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GV CULT - Criatividade e Cultura

Casa-grande & senzala e Raízes do Brasil em Alagados

GVcult

20/05/2014 09h01

Por Bernardo Buarque de Hollanda. 

"Alagados, Trenchtown, Favela da Maré,

A esperança não vem do mar,

Nem das antenas de TV"

Após passagem por Curitiba, a edição nacional da Festa Literária das Periferias aportou em Salvador, no dia 10 de maio, mais precisamente na região de Alagados. Lembrada no hit homônimo dos Paralamas do Sucesso em 1986, a popular localidade baiana contempla um conjunto de bairros periféricos – Uruguai, Jardim Cruzeiro e Massaranduba – e dispõe de um espaço cultural, cujas origens remontam ao final da década de 80.

Sob a liderança de Joselito Crispim dos Santos de Assis, que coordena também o grupo Bagunçaço, destinado à educação de mais de duzentas crianças e jovens da comunidade, o centro de cultura foi o local de realização da versão soteropolitana da FLUPP.

No evento, tive a alegria e a honra de participar de uma mesa ao lado do mestre Marcos Alvito, historiador e antropólogo da UFF, ladeado também pelo mediador, Ecio Salles. O debate foi dedicado a conversar com os moradores de Alagados sobre as obras de Gilberto Freyre (1900-1987) e de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).

Como se sabe, os dois principais livros dos autores são, respectivamente, Casa-Grande & senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936). Ambos, por seu turno, foram associados a uma tradição ensaística e interpretativa da realidade brasileira, que floresceu nos anos 1930 e que procurou rever os paradigmas da formação histórica do país.

Além dos aspectos biográficos de cada um deles, cujas personalidades, aliás, eram bastante antagônicas, a parte mais 'quente' da tarde de sábado foi, por assim dizer, aquela voltada a tratar dos dois termos mais polêmicos consagrados pela fortuna crítica aos ensaios supracitados.

O primeiro é o mal afamado conceito de "democracia racial", de Freyre. Em verdade, conforme salientou em sua intervenção o professor Marcos Alvito, trata-se de termo inexistente na obra freyreana, atribuído a posteriori, uma vez que o antropólogo pernambucano emprega em Casa-Grande & senzala a referência "democracia social", não o adjetivo "racial".

O segundo é o também mal entendido "homem cordial", de Buarque. Neste caso, não se pode retorquir a inexistência da utilização da palavra cordialidade. Empregada pela primeira vez em 1931 pelo poeta Ribeiro Couto, o homem cordial faz-se presente, sim, nominalmente, no título do capítulo cinco de Raízes do Brasil. Mas a interpretação equivocada diz respeito à sua recepção unilateral, que a reduziu a sentimentos exclusivamente afáveis e bondosos, mais próximos do sentido francês, diversos do sentido etimológico original – aquilo que passa pelo coração – pretendido pelo historiador paulista.

A tarefa dos expositores, assim, esquentou quando se tratou de desfazer as nódoas associadas aos dois pensadores. Quanto ao primeiro, sem negar os aspectos conservadores de algumas posições políticas assumidas em vida pelo autor, o que fica como contribuição é a revisão da realidade histórica colonial brasileira, feita por intermédio de fontes novas e de metodologias inovadoras, à maneira do que propunham historiadores franceses da Escola dos Anais, com a acentuação dos fatores da história íntima, privada e material do Brasil colônia.

A mobilização de noções como "aventura", "plasticidade", "zonas de confraternização", "hibridismo" e "antagonismos em equilíbrio" é de fundamental importância na proposição de novos ângulos de análise da ação lusitana nos trópicos, com influências na identificação de um patriarcado à brasileira.

Detratado por intelectuais universitários que o sucederam, o significado maior do pensamento freyreano jaz na sua capacidade de superar os determinismos de toda a sorte – climáticos, raciais, biológicos e geográficos – em prol da afirmação das potencialidades inventivas da sociedade brasileira, até aquela altura vista como inviável, posto que mestiça.

Já o "homem cordial" a que se refere Sérgio Buarque é menos um traço imutável do caráter psicossocial brasileiro e mais um produto histórico de um país cujo Estado foi, contradizendo a mitologia da polis grega – de Antígona versus Creonte –, um prolongamento extensivo da família patriarcal, bem como um desdobramento perverso de sua "herança rural", convertida em bacharelismo retórico nas grandes cidades.

À medida que o privado se imiscuiu no público, deu-se origem à burocracia patrimonial herdada historicamente da península ibérica. O patrimonialismo é, por sua vez, o retrato da hipertrofia da esfera privada, em detrimento da atrofia do setor público.

Orientado por pares de opostos, Sérgio Buarque vê a cordialidade mais como um entrave à constituição da cidadania no país do que como um traço positivo. Presentes nos hábitos da linguagem, nos costumes religiosos e até mesmo nos negócios da economia, o homem cordial traveste-se em "ismos" pouco salutares – nepotismo, clientelismo, populismo – não obstante o seu autêntico élan emocional, que desestabiliza as formalidades e a frieza típica de uma era de despersonalização e de desenraizamento dos laços comunitários nas grandes metrópoles, onde grassam o anonimato e a impessoalidade.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.