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GV CULT - Criatividade e Cultura

Karlheinz Stockhausen e o cocar de penas

GVcult

09/05/2014 09h00

Por Marcelo Coelho.

À época em que fazia mestrado nos EUA, eu e alguns colegas decidimos ir a um festival de música eletrônica durante o spring break – programa improvável para um grupo de aspirantes a músicos de jazz, arranjadores e compositores de trilhas sonoras.

A ideia surgiu quando, após uma semana intensa de provas, recitais e trabalhos, alguém comentou que gostaria de saber o que se passava no 'mundo lá fora'.

Ficamos todos pensativos, afinal, esta observação indagava, ainda que de maneira subliminar, que o propósito de todo o nosso esforço estava voltado para um mundo paralelo e fictício onde só se ouviam e apreciavam concertos de jazz e de música erudita.

Apesar da provocação, pensávamos apenas na ideia de que iríamos finalmente sair para usufruir do mundo lá fora.

Nosso interesse, a priori, era consumir qualquer que fosse o conteúdo etílico disponível e conhecer pessoas. No entanto, paradoxalmente, a música executada neste festival foi o que prendeu a nossa atenção.

Além da maçante e contínua 'batida' característica da música eletrônica, escutávamos, estupefatos, de que maneira as ondas senoidais* geradas a partir de um módulo de sons estavam sendo usadas para a construção de temas melódicos e improvisações dos DJs. Nada nos parecia mais confuso.

Saímos do festival imaginando que Karlheinz Stockhausen (1928 – 2007) – compositor alemão de grande importância na música contemporânea erudita do século XX , precursor do Elektronische Musik que culminou no gênero conhecido como Música Eletroacústica – talvez estivesse transtornado com as aplicações  comerciais dos recursos eletroacústicos explorados por ele de maneira lúcida e conceitual.

Por muito tempo refleti sobre esta experiência, e cheguei a algumas conclusões.

Cada recurso existente na natureza ou criado pelo homem pode ser aplicado e reaplicado de várias maneiras. Embora seja o homem quem irá observar criativamente a potencialidade da aplicação, sabe-se que a materialidade do recurso já traz implicitamente as suas possíveis aplicações – um cocar indígena feito de penas é símbolo de nobreza para os índios; ao mesmo tempo, é possível encontrá-lo como um adorno, um objeto de decoração e apreciação em uma civilização urbana.

A materialização e significação das aplicações dos recursos depende do contexto cultural, social e tecnológico onde está inserido.

O compositor Stockhausen tinha como recurso as senoides puras, sons sintetizados e outras fontes sonoras. A materialização ou aplicação criativa destes elementos consolidou o seu processo composicional na década de 50, momento em que, ainda que de maneira precária e trabalhosa, a tecnologia já permitia o manuseio das senoides.

As experiências de Stockhausen colaboraram para a configuração de uma nova perspectiva de aplicação destes recursos que, até então, não haviam sido observados ou pensados como objetos de apreciação artística.

O compositor alemão tornou-se, desde então, um Avant-garde da música contemporânea erudita e referência para diversos outros compositores.

No entanto, devemos lembrar que, apesar da inquestionável qualidade e importância da sua música, o êxito e o reconhecimento por parte do meio musical e do público deveu-se também às expectativas e demandas de uma época. A  proposta musical de Stockhausen estava em sintonia com o contexto cultural, social e tecnológico daquele momento.

Retornando ao evento, pode-se imaginar o impacto negativo que a música eletrônica dos DJs causou em um grupo de estudantes dedicados cujo o objeto de estudo e interesse era a música revolucionária de outras épocas, dentre elas a música eletroacústica.

A percepção das transformações no processo de criação completamente voltado para uma demanda comercial indiscriminada, e a (re)aplicação sem propósitos dos recursos sonoros eletroacústicos nos perturbou e nos amadureceu.

Metaforicamente, nos sentíamos como índios que se deparam com os seus símbolos sagrados sendo comercializados como adornos para serem pendurados em paredes.

Porém, os índios também apreciam adornos.

Compreendi, então, que as contextualizações culturais, sociais e tecnológicas produzem não apenas bonança, como no caso de Stockhausen, mas também carência. Em qualquer área de atuação, esta é a lógica do processo.

Concluí que a todo momento o indivíduo materializa as escolhas que deseja experienciar de acordo com o contexto social, cultural e tecnológico em que vive. Em todos estes contextos sempre haverão as bonanças e as carências.

A escolha é de cada um. Alguns irão escolher usar um cocar de penas como um símbolo sagrado, outros irão simplesmente pendurá-lo na parede.


*As Ondas Senoidais, também conhecidas por ondas seno ou senoides, consistem num som de uma única freqüência. Esta vibração unidimensional não existe na natureza. Todos os sons que se manifestam naturalmente, inclusive os resultantes das atividades e criações humanas, são formados por um conglomerado de freqüências sonoras. Elas são responsáveis por caracterizar todos os sons que conhecemos – canto dos pássaros, som das águas, ruídos das máquinas, timbre de voz e todo o resto dos sons percebidos.

 

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

MarceloCoelho

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.