Chico Buarque se tornaria músico profissional se tivesse nascido em 1990?
Por Carlos Bernardina Jr.
Esta é uma pergunta que me persegue desde que vi um depoimento de Edu Lobo falando sobre o início da carreira, do medo que tinha em relação às possibilidades de autossustento vivendo exclusivamente da música. Podemos dizer que ele não entrou com os dois pés na carreira até sentir uma perspectiva mais concreta de viabilidade econômica a partir de seus primeiros trabalhos. Tinha a ideia de estudar para a carreira diplomática lá em Recife, já que vinha de uma família que possuía relações com o mundo do Itamaraty.
Chico Buarque, como se sabe, era filho de Sérgio Buarque de Holanda, importante teórico do Brasil. Sabemos que a entrada de Chico na música se sustentou graças ao sucesso das investidas iniciais, aparentemente sem muita expectativa por parte do compositor, que podem ser sintetizadas no estouro d´A Banda e na projeção internacional conseguida com a adaptação musical de Morte e Vida Severina, do antimusical João Cabral de Mello Neto.
Hoje, fala-se muito da necessidade do artista "aprender a ser seu próprio patrão", por assim dizer. Quando olhamos para a situação daqueles que pretendem viver exclusivamente de seu trabalho artístico hoje em dia, percebemos que a realidade é bem distante da que viveu Chico Buarque e Edu Lobo em seus tempos de principiante. Aparentemente, tendemos a relacionar o quadro atual mais com aquele vivido pela geração precedente: Vinícius de Morais, Ary Barroso, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, todos eles dependiam de outras atividades profissionais para sustentar seus trabalhos artísticos.
E mesmo aqueles que pareciam viver exclusivamente de sua arte, era apenas aparentemente. Tom Jobim, por exemplo, pode viver de sua música autoral apenas depois dos 33 anos. Antes disso, era um "operário da música", por assim dizer, vivia de escrever arranjos para o repertório das rádios. Aliás, aqueles que viviam exclusivamente de sua produção artística (Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Herivelton Martins), o deviam a uma conjuntura muito especial, baseada no poder econômico que o rádio desfrutava na época. Com o surgimento da TV, a música foi gradativamente perdendo a centralidade como meio de entretenimento do povo brasileiro.
Mas e hoje em dia? A internet chegou há mais ou menos 20 anos, e o mercado de conteúdo no Brasil entrou em parafuso desde então. A maior parte dos modelos de negócio ruiu, e as alternativas que surgiram são geralmente importadas e adaptadas de países onde a cultura de navegação online se estruturou jurídica e filosoficamente de maneira bem distinta da nossa. Por enquanto, a revolução digital simplesmente não está funcionando para melhorar a situação dos artistas profissionais, apesar da onipresente perspectiva de novos modelos de negócio mais benéficos, prósperos e equânimes para público e artista. É como se as novas tecnologias exigissem um grau de reflexão ética que ainda não estamos preparados para responder coletivamente.
Em meio a este cenário, os artistas são compelidos a saírem de seus casulos criativos e se posicionarem a respeito de temas do mercado nos quais eles historicamente evitaram se aprofundar. E, à medida em que eles se aprofundam nos diversos conceitos mercadológicos, buscando alternativas para a subsistência através de seu trabalho, parece que vão se tornando um pouco menos artistas.
Sim, a sensação é exatamente esta. Porque grande parte daquela energia que antes seria empregada para maturar a linguagem, pesquisar, ou para mergulhar no mar dos acontecimentos diários fora do ritmo oficial, buscando jogar luz crítica sobre o modus vivendi e o modus operandi que move em espiral os destinos humanos, boa parte desta energia é hoje utilizada para dar conta de como transformar este processo artístico tão trabalhoso e intenso num produto rentável… e aí já não é mais possível sequer haver um "processo artístico tão trabalhoso e intenso" para ser alcançado.
Dentro deste cenário, corremos o risco de ficar girando em torno da lâmpada, produzindo obras que sejam apenas espectro de obras. Refletindo sobre isso, percebo que este dilema artístico é apenas o reflexo de um dilema mais geral em nossas vidas: como existir para além do espectro? Em outras palavras, como manter aceso e vivo o processo de ir sempre além do que está posto, não nos conformando em ser meras engrenagens inconscientes de uma engrenagem maior? Para mim, a arte sempre teve o sentido de nos empoderar neste processo.
Parece que nossa sociedade vive numa ânsia de fechar todas as brechas para o que pode representar uma ruptura no sistema, quando está claro que a humanidade, ao longo da história, só avançou justamente através de indivíduos ou grupos que promoveram rupturas nos sistemas. Existe um processo de corporativização de todos os âmbitos da vida, que me remete à grande neurose coletiva que William Reich percebeu nos cidadãos alemães à época do terceiro Reich.
Não pode haver sucesso na tentativa desastrada de reduzir tudo a um processo bem sucedido de gestão. Mesmo porque, nossa capacidade de gestão parece ser ainda muito primária. Imaginem a quantidade de processos que a natureza precisa coordenar simultaneamente para a gestão do ecossistema mais simples? Temos ainda muito a aprender, e o perigo maior reside justamente em não atinar para isso. A arte deve estar aí para jogar luz sobre todos estes fatos, tirar os indivíduos do sonambulismo e do automatismo, mas o que fazer quando ela mesma parece insistentemente cooptada e incitada a corporativizar-se?
Acho que desviamos um pouco do foco inicial do texto, mas é justamente esta a questão. O desvio deve ser também desejado e celebrado no âmbito da produção simbólica e criativa. Não há necessidade de se desculpar, e nem deveria haver necessidade de "voltar para o foco". De qualquer forma, preciso terminar este artigo. E talvez a melhor forma de fazê-lo seja me posicionando a respeito da pergunta que dá nome ao texto (ok, vamos seguir o manual)…
Acredito que nossas mentes mais inventivas, críticas e criativas dificilmente seguiriam o caminho do artista profissional hoje em dia. No documentário sobre a vida de Vinícius de Moraes, Chico Buarque diz que não saberia como o poetinha seria capaz de viver em meio ao cenário cada vez mais "estratégico" e menos "espontâneo" das relações humanas.
Por outro lado, a complexidade do mundo do trabalho torna muito mais difícil a coexistência de carreiras paralelas. Basta parar e olhar ao redor, quantos artistas realmente relevantes você encontra trabalhando em outras áreas? Não estamos mais em 1950. A academia parece ser o refúgio para muitos bons artistas que conheço. O funcionalismo público, por outro lado, com o acirramento da competição e as exigências de produtividade cada vez maiores, parece não mais funcionar para acolher e permitir que indivíduos sensíveis e criativos desenvolvam seus trabalhos paralelamente. Dificilmente haverá outros Vinícius de Moraes, João Guimarães Rosas e Pablo Nerudas.
Seja como for, a relação da arte com o mercado deve ser sempre tensa e conflituosa, para o bem da lucidez e da força de nossa produção simbólica. Para a grande maioria de artistas que encontram ocupações complementares a seus trabalhos criativos particulares (seja na docência, na política ou no mercado publicitário), que os dilemas e conflitos experimentados sirvam de combustível e matéria-prima para suas produções autorais mais pujantes.
Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.
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