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GV CULT - Criatividade e Cultura

Mito e Arquivo na Literatura Latino-Americana

GVcult

08/04/2014 09h00

Por Bernardo Buarque de Hollanda. 

"… en el principio de la literatura está el myto,
y asimismo en el fin".
Jorge Luís Borges

"Primero fui el notario,
polvoriento y sin prisa,
que inventó el inventario".
Nicolás Guillén

"O esa voz no es de esa piel,
o esa piel no es de esa voz".
Calderón de la Barca

As inquietações literárias de Roberto Gonzalez Echevarría sobre a narrativa latino-americana, expostas no livro La voz de los maestros, de 1985, conforme vimos na coluna passada, ganharão corpo, forma e maturação com a publicação de sua obra-prima, cinco anos depois: Myth and archive – a theory of Latin American narrative (1990).

Ou Myto y archivo – una teoría de la narrativa latinoamericana (2000). Como a maioria dos seus livros, o trabalho é publicado primeiramente em inglês e, anos depois, em espanhol:

Nesse ambicioso volume, que dista apenas três anos de La ruta de Severo Sarduy (1987), Echevarría traz uma proposição ampla e complexa, mas enunciada de maneira clara e sucinta, como sói acontecer em seus escritos: trata-se de uma teoria sobre a origem e a evolução da narrativa na América Latina, em particular sobre o nascimento da novela moderna. Esta seria encontrável em três tempos.

Primeiro, sustenta o autor, as narrativas teriam nascedouro entre os descobridores do Novo Mundo, a exemplo dos relatos de estupor e maravilhamento legados por Cristóvão Colombo, Hernán Cortés e Francisco Pizarro. Com evidente inspiração foucaultiana – embora afirmasse preferir a doçura da literatura à utilidade da teoria –, Echevarría salienta como os textos dos conquistadores dialogam, por sua vez, com um tipo de discurso jurídico-legal emergente durante o Império Espanhol, em princípios do século XVI.

Em paralelo à constituição do Estado moderno na Espanha dos reis católicos, a novela picaresca, subgênero literário em prosa, adquire importância e protagonismo: tal ficção ter-se-ia valido da imitação e da simulação de discursos provenientes do Direito, das leis régias e dos papeis da burocracia patrimonial, que também influenciaram, diga-se de passagem, a vida colonial hispânica.

Entre estes, destacam-se os documentos notariais e as fontes arquivísticas, como os autos de punição e confissão criminal. Ao empregar tais modos discursivos oficiais, a finalidade dos escrevinhadores à época era a obtenção de perdão e, por conseguinte, a conquista da legitimidade que evitasse o castigo e a perseguição das autoridades.

Na sequência, o segundo momento epocal da literatura latino-americana encontrar-se-ia no cenário pós-independentista do século XIX. O autor chega a mencionar as milhares de cartas arquivadas do libertador Bolívar, como a Carta da Jamaica, de 1815, mas é do advento de um modelo de narração calcado no discurso cientificista, quando este torna-se voga entre os viajantes-cientistas, que trata.

Os sábios observadores de então, como se sabe, saíam em busca da classificação da realidade natural e social, por meio da descrição minuciosa da natureza – rios, selvas, espécies e espécimes – e através da exploração dos traços característicos do homem e da sociedade latino-americanos.

Aliás, a edição espanhola do livro traz uma ilustração pictórica do que viam esses exploradores-pesquisadores. É o quadro Corazón de los Andes (1859), do paisagista norte-americano Frederic Edwin Church (1826-1900), hoje pertencente ao Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque:

CorazondelosAndes

Conhecimento, autoridade e poder se interpenetram junto às catalogações da biologia e às taxinomias da antropologia. Basta evocar os relatos das expedições de um Alexander Von Humboldt ou de um Charles Darwin nos trópicos. Com base nesse paradigma, Echevarría dedica-se a examinar o tipo de narrativa que emergirá em solo local, seu processo de nativização, por assim dizer.

Entre os exemplos mais originais, o autor cita a obra de Domingos Sarmiento, na Argentina, com Facundo: o civilización y barbárie en las pampas argentinas (1845) – texto de exílio, escrito no Chile, quando o caudilho Manuel de Rosas empalma o poder no Prata – e os topos da saga rústica de Euclides da Cunha, no Brasil, com Os sertões (1902) – texto de um correspondente de guerra, redigido anos depois do embate das forças do governo republicano contra jagunços e devotos de um arraial do interior baiano.

O terceiro momento, identificado por Echevarría, atém-se ao período novecentista mais recente, quando do boom da novelesca latino-americana. Eis algumas delas: Los pasos perdidos (1953), de Alejo Carpentier; Terra nostra (1975), de Carlos Fuentes; El beso de la mujer araña (1976); El arpa y la sombra, a última novela de Carpentier (1979); e El general en su labirinto (1989), de Gabriel Garcia Marquez.

KissoftheSpiderWoman

O argumento echevarrino planteia que a novela contemporânea é de natureza polimórfica e remissiva. Ela cria sua própria forma mítica e fabulatória, mas quase sempre mediante um regresso atávico aos dois momentos que a precederam – séculos XVI e XIX –, quer seja ao recinto de guarda das suas origens legais – o arquivo – quer seja à acumulação de maneiras obsoletas de discurso do conhecimento científico e antropológico – o poder.

Sem que possamos prosseguir nessa exposição, por limitações espaciais, sumarissimamente o que importa ressaltar nessas linhas é o fulcro da teoria de Echevarría. Ela sinaliza para o horizonte nascente de uma literatura comparada, hoje tão em moda. De acordo com tal ponto de partida, o registro literário só pode ser compreendido na América Latina quando visto em relação a outras escrituras, sobretudo às legislativas, pois são elas que moldam e informam seu substrato narrativo, marcado pela ductibilidade e por seu caráter camaleônico.

Fico com as linhas explicativas a seguir, que apontam os princípios do crítico cubano: "Las relaciones que la narrativa establece con formas de discurso no literárias son mucho más productivas y determinantes que las que establece com su própria tradición, con otras formas de literatura o con los hechos históricos concretos".

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.