A Natureza da Coragem
Por Vítor Steinberg.
Por que a potência dos motores é medida em "cavalos"? Quando observamos os detalhes de um carro, temos um pormenor comprovando sua força e energia: seus "cavalos de potência". De onde veio a ideia de caracterizar o vigor de um motor como "cavalos potentes"? Será que do símbolo da Ferrari, o cavalo rinchando?
Segundo o poeta Ferreira Gullar, o homem, por natureza, é um ser incompleto. Não tem como adorno natural papilas que expelem veneno, garras que arrancam carne, espinhos que protegem solavancos. Sua pele não se camufla a nenhuma pedra, não há ferrão, não há nem ao menos uma cauda que expressasse em corpo alegria, satisfação, felicidade.
Para ultrapassar a força física, dote natural, e conseguir sobreviver, matar e comer, o homem desenvolveu as armas, as lâminas, os pequenos objetos pontiagudos. Já evoluído com memória e criatividade, as ferramentas tornaram-se aliada para prosseguir a espécie, para a fertilidade, tão somente importante que primeiro virou qualquer coisa abstrata, geométrica. Depois passou a figuração: mito, arquétipo, deusa. Os pedregulhos foram sendo cuidadosamente ornamentados com faces, máscaras, expressões, alegorias de rituais e sacrifícios.
Este cuidado com o artefato é um criar a partir de sua história particular e o ambiente que o circunda. É a grande gênese da arte e do artista. A princípio, arte é produção humana. Tudo o que o homem produz é arte, lembrando Duchamp. Chamar esses instrumentos rupestres de "arte" é uma escolha, um valor. O conceito de arte é meramente ocidental. O índio, por exemplo, não tem isso: em sua cultura há apenas a preocupação pelo "bem feito".
Este valor artístico é o mote filosófico da arte no decorrer dos séculos. É o valor estético de um objeto que o define na esfera da arte? Ou então arte estaria mais próxima do sentido de criatividade, não importa qual objeto se vale? Um vaso sanitário é belo?
Em pleno século XXI, ainda podemos identificar o mesmo sentido artístico de pinturas em cavernas com grafites urbanos: feitas em lugares difíceis de alcançar, uma grafia sobreposta a outra indicando inimizade. O mais importante é a necessidade de produzir para perpetuar, um seguro sentido da vida.
Na Grécia antiga, a necessidade era copiar o cosmos, tão sublime e organizado, mesmo depois dos eventos trucidantes e trágicos da cosmogonia (ao mesmo tempo teogonia). Após o ininteligível caos e tantos parricídios, cissiparidades e esquizogenias houve enfim a harmonia, a ordem apolínea da qual o cidadão grego se envolvia.
O Olímpio nada mais era do que a tradução mítica de feudos organizados entre os deuses, respeitando os limites dos outros. O cosmos parecia responder a ordem. A astrologia veio traduzir essa busca pela felicidade: a organização do mundo para que seja inserido no cosmos como harmonioso. Até os casamentos eram organizados de acordo com o zodíaco. O mestre da verdade era o mago, ou "adivinho", aquele que enxerga o que o mortal não vê, enxerga o invisível, contempla a natureza até alcançar uma verdade. Esse sentido de "verdade", na Grécia, era a alethea, o não esquecimento, não uma explicação que destrói o segredo, mas honra o mistério. Tudo era dito, falado, escrito, para que nada fosse esquecido.
O mito, portanto, é a explicação da verdade pelo invisível.
Tal harmonia universal parece utópica e inatingível na ótica do processo histórico da humanidade que até a própria Grécia e seu sistema de cidadania parecem um mito. Por exemplo, numa guerra civil, existe uma cidade contra si mesma: a beleza sucede a desordem. É comum ver uma no cotidiano. Ao que se assemelha, o grego indicava pistas pela busca de uma origem comum. A busca pelo arché, a origem, o uno, a unidade original, é a busca pela beleza cósmica, a harmonia, a proporção.
Nós compreendemos a beleza e a harmonia do universo na Escola de Mileto, a que se buscava este arché. Tales diz que a origem é a água ("tudo sai e volta da água"), numa ideia de tempo cíclico. Outros filósofos, por conseguinte, votavam no tudo que sai do ar, da terra. Ou seja, os elementos da natureza são o "tempo cíclico". Pensamentos que foram tomando outras formas no filtro da filosofia platônica, que remete novamente aos sentidos do belo e seu valor.
No quadro de Rafael, localizado no mural do Vaticano, "A Escola de Atenas" vemos no centro Platão e Aristóteles (seu discípulo). Platão aponta para cima, sugere a Ideia, o sobrenatural. Aristóteles, para baixo, indicando o sensível, o "chão". Platão apontando para cima: o mundo da ideias, distante da convenção artística. Para Platão, a arte não tem nenhum sentido, é cópia da cópia. O mundo inteligível, o que conhecemos através da inteligência destituída do sensível e o mundo sensível, o mundo que conhecemos pelo corpo, pelos sentidos – é o mundo das aparências.
A Platão, este é um mundo a que não devemos nos enganar. Insere a arte nesse contexto. Do lado de fora de sua caverna há um muro e atrás há um fogo – há homens acima do muro que vivem sob a luz do fogo. Essa é sua aversão à representação. Não é através da ilusão (artística) que se alcançará o conhecimento absoluto. Devemos nos deslocar do mundo sensível em busca do inteligível, chegar ao mundo das idéias.
Platão desfavorecia principalmente o teatro, pois sempre buscou que a palavra tenha um sentido só (inclusive inventou os exemplos). O uso da palavra certa, na hora certa, é um argumento com poder transformador.
Os Sofistas, mestres do bom conselho e da sabedoria das necessidades que procuramos eram atacados por Platão que se referia a eles como os mentores do Relativismo, comprometidos pela verdade una. Os poetas, para o filósofo, dizem "discursos multicoloridos", é contra o mito, contra a poesia.
A ideia platônica é: não criada, una e não se repete, autônoma, habita cobertura inacessível. O mundo sensível é: material, criado (cópia), encontra-se no mundo terrestre: está e produz.
Séculos depois, o pensador e crítico de arte Erwin Panofsky analisa que o que era inacessível a Platão, as ideias, virou o próprio conceito de arte. As ideias foram rebaixadas e o que era abaixo do sensível elevou-se, a cópia. A ideia da arte e a arte viraram uma coisa só. Talvez, hoje em dia, Platão apreciasse uma pintura abstrata de Miró.
Platão era favorável à arte como Paidéia – ritmo de formação dos homens, a formação da humanidade, nunca servir para iludir. Deve renunciar a individualidade e a originalidade (criatividade/imaginação). Prefere arte egípcia a arte grega, pois a egípcia remete ao verdadeiro, não é reprodução fiel: existem perspectivas de realidade, nunca realidade verdadeira. O corpo humano, por exemplo, não é a beleza em si, mas remete à idéia de belo.
Ao filósofo, a arte grega imita demais o que o cosmos já fez. Imita de tal forma que ilude o ser. Sugere inclusive proibir os artistas, os contos, etc. e em seu conceito de república, não permite os artistas entrarem ou contar histórias. Proíbe os versos e a mitologia.
Platão não aceitava a arte a não ser para provocar as mais frágeis ilusões. O que presenciamos não é real, o real está em outro plano. Não podemos identificar o incomum, mas muitos séculos adiante, outro filósofo, Kant, ainda mais complexo que Platão, comenta a sucinta frase: "gosto não se discute". A infinidade de possibilidades que nos apresenta o real não serve para medir exatamente o peso que tem a arte sobre a humanidade. As possibilidades de criação e interpretação são infindáveis.
Para Platão, e a seguir Schopenhauer, a música é a expressão mais transcendental de todas as artes. Com música, pego o abstrato total e dou forma: produzo algo sem correlato, como o mármore e o livro.
Nietzsche, por outro lado, contradizendo Platão, confere que a sensibilidade grega era tamanha que a própria existência não tinha sentido. Abriram-se duas saídas: desistir da vida ou criar seres para dar sentido à existência. A existência tem sentido pelo viés estético: o fazer arte. A Nietzsche, tudo é arte. A Platão há desvalorização da idéia, a arte engana. A Nietzsche, a vida engana – tudo o que o homem cria para ilusão é para conseguir lutar pela vida.
Para Bellori, a ideia do belo está no artista. Ele deforma a ideia platônica, a ideia de belo está na cabeça do artista e, portanto, transfere isso para a matéria. O trabalho do artista é fazer a natureza ainda mais bela: competir, corrigir e supera-la. Se a natureza é o padrão de beleza, junto ao ideal de belo devo arrumá-la, aperfeiçoa-la, ir além. Ao tentar supera-la, preciso encontrar a fórmula que ela usa para eu poder competir com ela: as mesmas armas que ela possui. Para descobrir suas armas, transformo-a em objeto. Passo a considerar o mundo como sujeito e objeto. Começa-se o distanciamento entre artista e obra, cientista e objeto e filósofo e objeto. Gradação cada vez maior na história: desrespeito total à natureza e o meio ambiente. Ânsia para descobrir como a natureza funciona.
O filósofo Francis Bacon abriu ainda mais essa ideia, dizendo que a humanidade não pode esperar a natureza mostrar seus segredos. Como fizeram aos pagãos, devemos torturá-la. Esse conceito que paira o mundo até hoje despertou na arte e se intensificou com a ciência.
Hoje há uma tentativa de harmonia. Até o século XX houve um grande distanciamento, o pesquisador não poderia se envolver com o objeto desvendado. A fenomenologia resgata o valor do objeto. Não se pode ver o mundo em tal distanciamento.
Se pode-se enumerar três conceitos que formam a estrutura do belo: Tempo, Poiésis e Mimesis. Tempo, eternidade. Poiésis, produção e Mimesis, imitação. Essa tríade remete à aura do artista, do poeta como um ser especial. Para Platão e Aristóteles, os artistas são seres inferiores. Como diz Heidegger: "poeticamente o homem habita", ou seja, só posso habitar o mundo se produzo. É uma contundente definição do significado de Poiésis: prática que não está fora do mundo. Poeta não está fora do mundo, é producente, assim como todo homem produz. Um quadro de Michelangelo é mais belo por que tem harmonia, não é feito em série e o vaso sanitário, não? Entre valores e conceitos, a produção humana é por si só arte e saber ver nela sua beleza, quase como um mago vendo o invisível, utiliza-la com criatividade, é percorrer os desvairados sentidos do belo, sem dividir, isolar-se, pelo contrário, com criatividade coletiva e colaborativismo. Seria a idéia mais importante que a obra? Todos nós somos poetas.
Aristóteles concordaria com essa afirmativa. Em sua asseveração de que o percurso vai da Idea a Forma, pode-se dizer que tudo o que o homem faz é arte: "É produto da arte tudo aquilo que reside na forma na alma do homem".
Quanto a Cícero, já no Império Romano, o artista não imita apenas, mas cria. Artista é ser tão importante quanto o demiurgo. Não está voltado de corpo e alma inteiros para a natureza, tem a idéia e transpõe à obra.
É criador, nem imitador, nem intérprete da essência. O artista como produtor liberal. Cícero ao mesmo tempo concede a áurea do artista como ser especial, item que Platão e Aristóteles diferem em absoluto – artistas são irrefutavelmente seres inferiores. Não há glamour para os filósofos gregos.
Ao olhar filosófico, para elevar a arte no plano superior, deve-se perder sua realidade sensível. Se o artista quiser ser deus, haverá um enorme distanciamento do público. Um conceitual distanciamento da materialidade.
A obra é capaz de abarcar a idéia ou a idéia é tão superior que nunca vai se conter numa forma?
Sêneca despreza toda essa questão. Não quer perder tempo dizendo se a obra tem mais ou menos valor, a obra é o que está lá de fato: converge para realidade. Recebi a imagem, vislumbrei, processei e dei forma a ela na obra. A obra é a idéia. Uma vez produzido, ganha vida própria.
Afinal, há uma terceira realidade, além de forma e ideia: o que está produzido de fato. De um lado, a ideia. Do outro, a matéria. Se na física, entre duas forças opostas, há o neutro, a comparação é evidente. A obra é produto de uma realidade paralela. O salto, o interstício, segundo Foucault.
Para Duchamp, o que tenho que ver como obra é o que está ali, não o que pensei, idealizei. Nem diferença de valor, nem de ser.
Plotino, também do Império Romano, discorda bravamente. Há sim diferença entre o valor da ideia e da obra. A ideia vale mais. Pois a obra precisa da matéria, substância ignóbil, pobre, nunca conterá a riqueza da ideia. É um neoplatonismo: o uso do nunca.
Para Santo Agostinho, na Idade Média: o artista é capaz de admirar a beleza invisível e transforma-la em forma singular de beleza. Somos o que somos, pois é assim que o criador quis. O cosmos quis. O vaso não pergunta ao escultor a razão por ele estar em sua forma. Visão do mundo como obra e deus como criador: a arte e o artista.
Walter Benjamin, em outro imenso salto para o Séc.XX, na Escola de Frankfurt, ativa outras discussões em relação a cópia e a produtibilidade. Se temos indústrias que copiam obras em série, o que passa a significar a arte? É relevante acreditar na aura de um original, na sua verve única? Na reprodução em série de uma foto, por exemplo, deixa de fazer sentido distinguir entre original e cópia, a não ser que se seja capaz de identificar uma "aura" do original. A sua visão implica em ver na reprodução técnica uma possibilidade de democratização estética, desde que elas conservem as características daquilo que, até então, chamaríamos de original. Isso fica claro quando ele toma, por exemplo, as fotos que podem ser feitas através de um mesmo negativo. Na verdade, quem poderia distinguir a primeira foto feita a partir de um negativo de uma segunda?
Adorno e Horkheimer analisam que toda reprodução contribui para a perda de identidade da originalidade e está à disposição de uma elite que manipula aqueles que não possuem acesso aos originais, através de cópias feitas em série, conferindo a todas as cópias uma característica mercadológica, portanto, massificante. Ao contrário disso, Benjamin acredita que isso gera, desde que observadas as técnicas, uma politização capaz de moldar o senso crítico daquele que observa.
A trajetória do belo, e os seus sentidos de fato, é um samsara impermanente. Desdobra-se muito bem, cola-se perfeitamente com a complexidade invisível do real. O caos, talvez, é traduzido em símbolo e arte como cósmico, trazendo consigo a fatal ilusão de belo. A que Nietzsche diz essencial para viver.
No dia 10 de Junho de 2008, foi publicada no jornal Estado de São Paulo uma pequena entrevista com Cildo Meireles, artista plástico que havia sido laureado com o prêmio Velásquez, na Espanha. Meireles pode concluir essa grande roda do belo com a frase que anunciou: "a arte é sempre uma espécie de inutilidade indispensável, decorrente daqueles que estão próximos da loucura e que têm força e coragem para transformar seu entorno".
O que isso tem a ver com coragem? A Ilíada de Homero e as Sinfonias de Ludwig van Beethoven. Ou, em resumo, a natureza da força.
Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.
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