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GV CULT - Criatividade e Cultura

A literatura brasileira no século XXI

GVcult

25/02/2014 09h00

Por Bernardo Buarque de Hollanda.

"Caso desabrochasse essa palavra – que é a palavra?

Fruto da boca humana? Pedra ou palavra…"

Ricardo Dicke

A literatura, como as demais atividades do espírito, impõe-se, de tempos em tempos, um balanço. A retrospectiva varia segundo o critério: ora se opera um crivo geracional, ora se opta pelo recorte das décadas, ora prefere-se a divisão mais tradicional em correntes ou estilos literários.

Não obstante, investigar as novidades do presente, com a análise de obras ficcionais recém-lançadas ou publicadas há muito pouco tempo, torna-se bem mais desafiador do que o comentário de livros já incorporados ao cânone da tradição ou consagrados pelo panteão da crítica jornalística ou acadêmica.

Foi esse desafio que me atraiu para a leitura da coletânea Narrativas contemporâneas (Porto Alegre: Libretos, 2012). Organizado por Gínia Maria Gomes, professora do Departamento de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o livro examina perfis de romances e de contos brasileiros na contemporaneidade, a partir de ensaios de abalizados críticos universitários.

João Almino, Luiz Ruffato, Bernardo Carvalho, Chico Buarque, Rubem Fonseca, Cristóvão Tezza, Antônio Torres, Moacyr Scliar, Milton Hatoum, Autran Dourado, Lourenço Mutarelli, Altair Martins, Ricardo Dicke, Ronaldo Correia de Brito são alguns dos romancistas examinados.

Os romances em tela foram em sua grande maioria publicados no século XXI: Eles eram muitos cavalos (2001); Nove noites (2002); Diário de um fescenino (2003); A parede no escuro (2008); Galiléia (2008); A arte de produzir efeito sem causa (2008); O filho da mãe (2009), Leite derramado (2009); Cidade livre (2010).

No elenco de contistas encontram-se Carlos Ribeiro, Fernando Bonassi, Altair Martins, Rubem Figueiredo, Pedro Salgueiro, Marçal Aquino, Bernardo Carvalho, Beatriz Bracher, Amílcar Bettega Barbosa e Heloisa Seixas.

Dentre os contos, gênero da brevidade e da intensidade que, para Jaime Ginzburg, adquiriu caráter central na cena contemporânea, destaquem-se: Deixe o quarto como está (2002), Inventário (2003), A vida de um homem normal (2003), Os lados do círculo (2004) e João (2009).

Uma mostra da proximidade temporal entre a prosa analisada e o momento de sua publicação pode ser aferida no ensaio de Regina Zilberman, quando afirma:

"O tempo dirá se Cidade livre é o fim de um ciclo; mas o romance, sem dúvida, narra um começo – o da cidade que acolhe as figuras da trama, o que significa afirmar também que relata o início de um modelo de nação para o Brasil, dado o projeto que fundamentou e fecundou a criação de Brasília".

Numa visada geral, dentre as características correntes que sobressaem nessas narrativas contemporâneas, quer seja a da prosa romanesca quer seja a do gênero do conto, poderíamos elencar livremente, entre outras:

  1. O recurso à memória retrospectiva e prospectiva;
  2. A autoanálise;
  3. A intertextualidade;
  4. A linguagem telegráfica;
  5. O hibridismo linguístico;
  6. As imagens labirínticas no cotidiano urbano;
  7. A polifonia narrativa ("multiplicidade de vozes e suas consciências imiscíveis");
  8. A metaficção historiográfica;
  9. A eloquência do silêncio;
  10. A precariedade do indivíduo moderno;
  11. A fragmentação da experiência diária;

Em síntese, é sobre essa marca citadina fragmentária que a mesma professora Zilberman se atém, ao buscar caracterizar a assim chamada "nova literatura brasileira":

"… essencialmente urbana, explora, por meio de uma riqueza de temas e formas, os encantos, os fetiches e a crueldade das cidades, produzindo no interior individual o desencanto e a inaceitação frente à precariedade da vida. Mais que habitantes, os indivíduos tornam-se, a cada dia, seus sobreviventes e prendem-se a ela na tentativa de escapar da enxurrada globalizante por que o mundo passa".

 Tal caracterização sintética levaria à questão: qual é, pois, a diferença entre a narrativa moderna e a contemporânea? Qual é o seu acicate?

A pergunta nos ocorre ainda influenciados pela leitura da coletânea, que assim define o romance moderno, esteado no escritor e cineasta francês Alain Robbe-Grillet: "o real é descontínuo, formado por elementos justapostos sem razão, cada um é único, e tanto mais difíceis de entender porque surgem sempre de modo imprevisto, fora de propósito".

Para não cair na fácil etiqueta do pós-moderno, uma das autoras da coletânea, Regina Dalcastagnè, ao examinar em conjunto a temporalidade em seis romances brasileiros recentes, defende ao contrário a permanência do critério espaço-temporal na narrativa.

Por mais que tal critério venha a ser eventualmente esgarçado, como sucede na obra de Luiz Ruffato, o procedimento ainda seria uma excepcionalidade, um exercício de desconstrução da ideia de unidade e da díade causa-efeito, em prol da fragmentação, da colagem e da simultaneidade.

Mas a cronologia e a linearidade, sustenta a autora, ainda se fazem necessárias para a inteligibilidade do mundo contemporâneo, posto que elas constituem elementos estruturadores e estruturantes das narrativas, articuladores da experiência entre o homem e o tempo. Longe de ser uma entidade abstrata, arremata Dalcastagnè, a dimensão espaço-temporal é afinal uma construção social e dela sempre carecemos para dar sentido à nossa existência e à nossa "ilusão biográfica".

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.