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GV CULT - Criatividade e Cultura

O filósofo e a faxineira

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14/02/2014 09h00

Por Marcelo Coelho.

Sócrates, filósofo do período clássico da Grécia Antiga e um dos fundadores da filosofia ocidental, assumia-se como alguém que sabia que nada sabia. Sua célebre frase "Só sei que nada sei" tornou-se um jargão corriqueiro nos dias hoje. Apesar do clichê, confesso que experienciei o significado deste pensamento junto a minha faxineira, Rosa, carinhosamente Roselita.

Às segundas-feiras, a casa sofre uma transformação quase cirúrgica. Nada passa despercebido pela perspicaz Roselita. Como quem espera o fim de um parto, aguardo ansioso do lado de fora. O término do expediente é sempre cheio de surpresas, muitas gratas, outras nem tanto.

Roselita tem a grande habilidade de cuidar criativamente da casa. Trocar de lugar os quadros, livros e souvenirs é condição sine qua non do seu trabalho. Pensar em uma nova disposição para as camas, mesas e tapetes é também uma outra atividade que Roselita parece exercer com grande satisfação.

Não foram poucos os embates. Por vezes a sensação de estranhamento dentro do meu próprio habitat me fizeram conhecer um EU nada simpático.

Em vão! Roselita manteve-se fiel ao seu processo criativo de arrumação.

Minhas argumentações estéticas para justificar a posição de um quadro, a ordem dos livros ou a disposição dos tapetes transformaram-se em monólogos que servem apenas para fomentar o meu próprio processo de reflexão.

Mas esta situação me fez compreender, a duras penas, que havia algo em comum nas nossas diferenças –a cognição criativa.

Nas diversas atividades onde o homem exerce algum tipo de pensamento reflexivo ou observação atenta em que lhe cabe algum tipo de interferência no cenário em que atua, seja nas artes, na ciência ou no cotidiano, verifica-se uma analogia no processo cognitivo para definição das ações.

Embora sejam similares os princípios que regem as noções de forma, equilíbrio e harmonia na cognição criativa, sabe-se que sua a realização é bastante distinta.

A realização ou materialização do processo cognitivo criativo está atrelada às demandas exigidas pelo ambiente onde se realizam este processo. O filósofo, por exemplo, lida com o pensamento reflexivo, o músico com sons, o arquiteto com a perspectiva, o médico com o corpo humano, o pedreiro com a construção civil, e assim por diante.

Desta forma, o ato de realizar, o fazer acontecer, está vinculado à observação das especificidades de cada área. Através da observação atenta, percebem-se as possibilidades, os limites, as intenções e as aplicações do conteúdo que será manipulado.

Compreendi, então, que as escolhas da Roselita baseiam-se na sua percepção de forma, equilíbrio e harmonia do cenário, no caso, a arrumação da casa. Estas escolhas refletem uma concepção estética de quem pensa a partir de funcionabilidade e praticidade. O seu trabalho, da maneira como é realizado, exige o exercício constante da observação criativa, ainda que a noção de criatividade não esteja clara.

Desde então, Roselita deixou de ser para mim alguém que cuida para se tornar alguém que cria.

No entanto, apesar de compreender a complexidade que abrange todo o processo cognitivo criativo e as enormes possibilidade de realização, ainda reluto em apreciar certas criações dela.

Em um dos momentos de trégua, curioso em saber a razão de tanta criatividade, perguntei o porquê da necessidade de sempre mudar tudo de lugar. A resposta foi simples: "não sei… também não sei porque não sei!"

Sócrates iria se orgulhar!

sf

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

MarceloCoelho

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.