A literatura no cinema de Joaquim Pedro de Andrade
Por Bernardo Buarque de Hollanda.
Uma portentosa caixa de cinco DVDs, com a totalidade dos filmes restaurados de Joaquim Pedro de Andrade, tem permitido aos cinéfilos travar novamente contato com uma obra conhecida e reconhecida do Cinema Novo brasileiro. O dado consensual e mais evidente desse cineasta é sua relação com a literatura nacional, sobretudo aquela vinculada ao Modernismo.
Dentre longas e curtas, ficções e documentários, salta à vista a quase onipresença literária na filmografia de Joaquim Pedro. Seu arco fílmico inicia-se em fins dos anos 1950, com o registro documental de duas personas da intelectualidade pernambucana – Manuel Bandeira e Gilberto Freyre –, retratados respectivamente em O poeta do Castelo e O mestre de Apipucos.
Em meados dos anos 1960, o longa-metragem de ficção, O padre e a moça, leva às telas a adaptação de um poema de Carlos Drummond de Andrade. Seria o caso de se perguntar: como filmar uma dramática e densa poesia, que narra a fuga amorosa de um casal acossado pela moral religiosa? Não seria improvável traduzir em imagem e som os perturbados versos que dizem:
A moça beija a febre do seu rosto.
há um gládio brilhando na alta nuvem
que eram só carneirinhos há um instante.
– Padre, me roubaste a donzelice
ou fui eu que te dei o que era dável?
Depois da ousadia de cinegrafar o poema drummondiano, Joaquim leva a cabo o seu feito fílmico de maior sucesso, Macunaíma (1969). A película traz toda a sinergia, em alta voltagem, da rapsódia de Mário de Andrade com o Cinema Novo no contexto pós-AI-5, quando este já se encontrava disperso e descrente de projetos construtivos nacionais. O Macunaíma de Joaquim Pedro transfigura e transcende o de Mário, a ponto de ser inadequado falarmos em "adaptação" do livro ao filme, mas antes de "transfiguração".
Nos anos 1970, uma nova imersão de Joaquim na poesia alterosa de Minas Gerais, desta feita com a atmosfera sombria e insurgente das cidades históricas mineiras, em Os inconfidentes. Novamente a literatura comparece informando a sua matéria-prima poética. Ainda que em dicção muito pessoal, Joaquim Pedro é extremamente rigoroso ao transplantar para o cinema o intrincado depoimento criminal Os autos da devassa, dos poetas árcades Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga.
No mesmo filme, Joaquim Pedro declama e dá voz à Cecília Meireles de O romanceiro da inconfidência, cujo poemário de cinco partes e 85 "romances" principia com um sobressalto:
Não posso mover meus passos,
por esse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amores e ódios vão:
– pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
Após a prosa e a poesia, eis que chega a vez do conto no cinema de Joaquim Pedro. Não se trata de qualquer contista do gênero, mas de ninguém menos que o curitibano Dalton Trevisan. Joaquim Pedro leu em lentes cinematográficas dezesseis contos curtos e secos de Trevisan, coligidos nas leituras de Guerra conjugal, Novelas nada exemplares, Desastres do amor e O vampiro de Curitiba.
Um dos contos, censurado pela ditadura em 1979, ganhou autonomia e tornou-se um curta. Vereda tropical, protagonizado por Carlos Cavalcanti, desrecalca o erotismo de um sujeito obcecado por melancias… A adaptação é assim definida por Joaquim: "Crônica de uma tara gentil, encontro lírico nas veredas escapistas de Paquetá, imagética, verbalização e exposição candidamente impudica de fantasias eróticas".
Se a grande seiva literária de Joaquim Pedro foi mesmo o modernismo, não poderia ele filmar Mário de Andrade sem render tributo a outro modernista de escol: Oswald de Andrade. Ora se complementando ora se opondo, Mário e Oswald formam um duo. É assim que, depois de atingir seu auge com Macunaíma, o cineasta mineiro encerra seu ciclo de filmes com O homem do Pau-Brasil, alusão fálica ao famoso manifesto que barbarizava o carnaval carioca e a cultura brasileira:
"Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso… Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil".
Obrigado, bárbaro Joaquim!
Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.
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