Topo

GV CULT - Criatividade e Cultura

Mozart X Newton

GVcult

18/09/2013 09h00

Por Carlos Bernardina Jr.

Eu costumava ter uma frase de efeito: "Não existem gênios na arte". E justificava dizendo que a palavra "gênio" tinha uma implicação estritamente intelectual, ao passo que a arte trata muito mais de construir pontes entre as instâncias – intelectual, afetiva, intuitiva, corporal.

Claro que no fim das contas esse debate se mostrou vazio, já que a própria definição de "gênio" comporta todos esses significados simultaneamente. Mas toda essa reflexão um tanto fugidia me levou a pensar sobre porque alguns artistas são considerados grandes gênios da história da música. Alguns pela técnica, outros pela incisividade poética… outros ainda por sua coragem para questionar cânones e promover rupturas difíceis de serem suportadas pela maioria. Mas nenhum tipo de gênio parece se consolidar com mais tenacidade na história do que aquele capaz traduzir todo o "zeitgeist" de seu tempo através de sua arte, de forma clara, precisa.

Este post traz uma reflexão que tenta significar a genialidade de Mozart, o mais importante compositor do período clássico. Para isso, vou recorrer a uma passagem do livro O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra, onde ele resume de forma brilhante (pela concisão e clareza) a concepção de mundo que vigorava na época do músico alemão:

"Na concepção newtoniana, Deus criou, no princípio, as partículas materiais, as forças entre elas e as leis fundamentais do movimento. Todo o universo foi posto em movimento e continuou funcionando, desde então, como uma máquina governada por leis imutáveis. A concepção mecanicista da natureza está, pois, intimamente relacionada com um rigoroso determinismo, em que a gigantesca máquina cósmica é completamente causal e determinada. Tudo o que aconteceu teria tido uma causa definida e dado origem a um efeito definido, e o futuro de qualquer parte do sistema podia – em princípio – podia ser previsto com absoluta certeza, desde que seu estado, em qualquer momento dado, fosse conhecido em todos os seus detalhes.

Esse quadro de uma perfeita máquina do mundo subentendia um criador externo; um deus monárquico que governaria o mundo a partir do alto, impondo-lhe sua lei divina. Não se pensava que os fenômenos físicos, em si, fossem divinos em qualquer sentido. Para os cientistas dos séculos XVIII e XIX, esse enorme sucesso do modelo mecanicista confirmou sua convicção de que o universo era, de fato, um gigantesco sistema mecânico que funcionava de acordo com as leis newtonianas do movimento. Com o firme estabelecimento da visão mecanicista do mundo no século XVIII, a física tornou-se naturalmente a base de todas as ciências. Se o mundo é uma máquina, a melhor maneira de descobrir como ela funciona é recorrer à mecânica newtoniana. Assim, foi uma consequência inevitável da visão de mundo cartesiana que as ciências dos séculos XVIII e XIX tomassem como seu modelo a física newtoniana."

Ao nos perguntarmos que música traduz mais nitidamente a concepção newtoniana do mundo como uma máquina complexamente linear, estável e recorrente – e ainda assim extremamente dinâmica quando vista a partir de seu interior – não podemos deixar de pensar em Mozart. Ao escutar sua música, um sentido de ordem nos é informado a partir de dentro… é uma escuta que, por um lado, pode nos soar ingênua e enfadonha por sua previsibilidade, mas por outro, nos traz um sentido de estabilidade o organização fantásticos (alguns dizem que é uma música que "organiza a mente". Não é à toa que ela é recomendada para o desenvolvimento cognitivo em bebês!). Na verdade, essas características são a tônica do chamado período clássico na música erudita, e podem ser verificadas na música de compositores como Haydn e Beethoven (em seus primeiros anos). Mas Haydn não foi capaz de capturar com a mesma destreza o paradigma mecanicista, e Beethoven, com a sua 5ª sinfonia, foi mesmo o responsável pela ruptura com tal modelo, é um artista de transição. Não foi apenas a física que utilizou a concepção newtoniana como plataforma para suas operações, o pensamento humano e artístico da época também. Isso é inclusive citado por Capra um pouco mais adiante em seu livro:

"Os pensadores do século XVIII levaram esse programa ainda mais longe, aplicando os princípios da mecânica newtoniana às ciências da natureza e da sociedade humanas."

Assim como é importante notar que a física newtoniana não morreu com o advento da física contemporânea de partículas (apenas teve sua atuação restringida), é igualmente importante frisar que a música de Mozart ainda guarda importantes lições para nós. E faz isso não apenas ao fornecer um quadro histórico sensível da concepção de mundo setecentista, mas também – e principalmente – ao mostrar que é possível construir pontes entre a extrema engenhosidade para arquitetar formas abstratas e a extrema sensibilidade para capturar e traduzir o espírito de seu tempo através da arte.

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.