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GV CULT - Criatividade e Cultura

Vidas em cena – por Vítor Steinberg

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28/08/2020 07h45

"The Absinthe Drinker" (1901), Viktor Oliva

Por Vítor Steinberg

Um filme biográfico, cinebiografia ou biopic é um filme que dramatiza a vida de uma personalidade não-ficcional. Costumo brincar que esse tipo de gênero é como o museu de cera Madame Tussauds. A minoria convence, são artificiais, causam estranhamento e são imprecisos, às vezes até pela maquiagem. Meryl Streep como Margaret Tatcher ficou meio cafona. Outros são mais criativos, não se debruçam totalmente à tentativa de levar a sério a realidade dos fatos e por isso convencem. É a mensagem de Cidadão Kane (1941, Orson Welles): é impossível abreviar a vida de um homem. A vida é um labirinto, repleto de Minotauros, se vira mermão.

Lista de Schindler, Sete dias com Marilyn, Milk, Bruna Surfistinha, Ray. Nada fiel ao ardil do protagonista, temos Amadeus (1984, Milos Forman) que propõe maravilhosamente o contraste entre Mozart e um compositor menos conhecido, Salieri. Um Método Perigoso (2011, David Cronenberg) que romantiza Freud e Jung e a Keira Knightley no meio não tem como se render tamanha formosura.

Há muitos filmes de monarcas, Henrique VIII (The Tudors, 2007, seriado empolgante), Henrique V (O Rei, 2019, David Michôd, mais atual, na Netflix), George VI (O Discurso do Rei, 2011, Tom Hooper), Luís XVI, XV, Maria Antonieta (Sofia Coppola), rei louco Ludwig II da Bavária. General louco, Patton. Impérios Romano, Otomano e Russo já estão na Netflix. Kubrick quis fazer uma megabiografia de Napoleão, mas não deu certo. Há boatos de que essa produção será retomada em formato de seriado.

Muito filme de cantor, cantora, Jim Morrison, Fred Mercury, Elton John, Johnny Cash, Gia, Judy, Piaf. Muito filme de cientista, Stephen Hawking (A Teoria de Tudo, 2015, James Marsh), John Nash (Mente Brilhante, 2011, Ron Howard), Alan Turing (The Imitation Game, 2014, Morten Tyldum).

Filme de corrupto, Jordan Belfort (O Lobo de Wall Street, 2013, Martin Scorsese), Frank Abagnale Jr (Prenda-me se for capaz, 2002, Steven Spielberg) narcotraficante internacional Pablo Escobar (Narcos, 2015, José Padilha). Steve Jobs, Mark Zuckerberg, moderninhos. Lutas pelos direitos civis, Malcom X, Solomon Northup (Doze Anos de Escravidão, 2014, Steve McQueen), Ron Woodroof (no belo The Dallas Buyers Club, 2013, Jean-Marc Vallèe). Ases da política, Bolívar, Churchill, Lincoln, Rainha Elizabeth (I e II), grandes humanos que pisaram sobre a Terra: Gandhi, Cleópatra, Evita, Gengis Kahn e Marco Polo. Pianista Wladislaw Szpilman, jornalista Truman Capote, produtor de cinema Howard Hughes (O Aviador, 2004, Martin Scorsese), diretores como Hitchcock, Godard, homem selvagem Hugh Glass (The Revenant, 2015, Alejandro González Iñárritu), homem solitário Jon Krakauer Na Natureza Selvagem (2007, Sean Penn), homem incompreendido Joseph Merrick, O Homem Elefante (1980, David Lynch).

Mais artistas: divertido diretor de cinema Ed Wood, poeta japonês Mishima, Virginia Woolf (The Hours, 2002, Stephen Daldry, filme que adoro demais da conta), uns ruins e nunca suficientes longas-metragens sobre Beethoven (Gary Oldman e Ed Harris tentaram, mas não rolou), Mahler (do louquíssimo Ken Russell), guerra de ego entre Brahms e Schumann. Outros ruins e nunca suficientes sobre Renoir, Monet, Van Gogh, Goya. O do Renoir, recente, é o mais bonito, delicado.

No Brasil os patéticos Chico Xavier, Allan Kardec, Getúlio, Silas Malafaia! Oswald de Andrade no O Homem do Pau-Brasil (1981, Joaquim Pedro de Andrade) vai mais longe, bem mais longe. O Chatô – O Rei do Brasil (2015, Guilherme Fontes) sobre Assis Chateaubriand engata a segunda marcha. O restante anda de ré.

Por essas e outras, sempre fui inspirado por tantas outras vidas para realizar um olhar no cinema. Cinema, seriado, websérie, podcast, ópera, agora não importa mais. Não sei por quê ainda não produziram essas "vidas". Seriam ousadas, demasiadamente?

Na esperança de um magnata-mor da Amazon, Netflix, Hulu, HBO, AppleTV+, Disney+ ou Starzplay ler este que vos escrevo, vou sugerir algumas vidas que poderiam mexer nos humores do mundo, balançar as estruturas, sacudir a coisa toda. A emoção, tramas e surpresas são garantidas, são vidas realmente surpreendentes.

Ah, se um dia eu puder dirigir algumas delas! Ou todas elas!

Ancine! Cinemateca! Diploma que tirei! Que faço?

A começar pelos fictícios: Axel d'Auersperg, Jean des Esseintes, Salomé, O Alquimista.

E os reais: Sócrates, Nicolas Flamel, Wittgenstein, Lord Byron, Montaigne, Walter Benjamin, Oscar Wilde, William James, Conde de Lautreamont, Edgar Allan Poe, Chico Mendes, Galileo, Da Vinci, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Proust, Joyce, Artaud, Dalí, Wagner, Alfred Schnittke, Warhol.

Mais ainda: Rimbaud e Verlaine.

Leia e discuta comigo a biografia de Rimbaud (A Vida Dupla de Um Rebelde, Edmund White, Cia. das Letras). Todos são bem-vindos a co-criar este "seriado" comigo.

Aos 17 anos, Rimbaud declarou, notoriamente, a seu amigo de infância Paul Demeny, em uma carta de 1871, seu desejo de se tornar um grande poeta.

Definiu a façanha como ser "um vidente", descrevendo também os meios para tal fim.

"O poeta se torna um vidente", escreve ele, "por meio de uma longa, envolvente e sóbria perturbação de todos os sentidos".

Aqui, encontramos o artista que deve estar, de alguma forma, fora de si… para fazer o tipo de coisas que fazem os leitores perderem a cabeça.

Mas não é bem o que Rimbaud parecia querer dizer. Embora "perturbação" seja uma tradução comum do dérèglement de Rimbaud, esta tradução, como as outras ("desordenamento", "desorganização", "dissolução", "perturbação") é enganosa.

Em francês, você pode usar dérèglement para um relógio que não marca o tempo, ou um sistema digestivo que está apresentando problemas, ou estações mais quentes ou mais frias do que o normal, ou comportamento humano fora dos trilhos morais.

Para que um poeta se faça vidente, como insiste Rimbaud, inspira-o essa qualidade de visão artística, todas essas irregularidades devem ser vividas.

Observe que Rimbaud diz "longa, envolvente" e "sóbria". A palavra "desregramento" aproxima-se da atividade, algo que você poderia realmente empreender: uma reescrita das regras, que regem como vemos, ouvimos, falamos.

@steinberg__

Edição: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.