Saliva – por Vítor Steinberg
Por Vítor Steinberg
Glosa, nome antigo para "fala", é de onde vem a palavra glossário, nosso vocabulário, nosso leque de palavras. Um repertório impossível de atualizar devido a fluidez dos nossos tempos. Impossível fazer update devido ao flush contemporâneo.
Nosso governador Dória usa muitos anglicismos (termos em inglês). Isto é, linguagem corporativa. Tem também o juridiquês, incomodando todX mundX com seu arcaísmo. Ou seria português arcaico? Aracaísmo não é daquele poeta Glauceste Saturno?
Entre a continência e o estapafúrdio, pedir vênia, em juridiquês, é pedir licença. Vi isso numa insônia às 3h da manhã vendo a tv do STF.
Caetano na live: "O Brasil é o Brasil". Sim. E nossa língua está evaporando homeopaticamente? Paulatinamente? Gradualmente? Em doses cavalares?
O cérebro não está mais a fim de registrar palavras, para liberar espaço no HD. Ora, já que o Google funciona como uma megamemória coletiva, para quê lembrar o nome daquela atriz num filme de 1954, se o app sabe tudo? Ou como faz para ir da sua casa até o dentista, se há a Alexia orientando?
Fora a preguiça da geral (da galera) ao lidar com monstrengos verborrágicos como epistemologia, axiomas, apotegmas, bricardos e parêmias. Além do atraso, agora há o medo. E se a sua gotícula salivar for uma terrorista? Falar não é mais tão seguro, talvez seja até mal-educado.
Piada inglesa: ninguém diz mais "I am british" e sim "I am bri-ish" para evitar que a pronúncia do "t" lance uma gota virótica no ar.
Melhor são mesmo tweets reflexivos, grupos-bolha de WhatsApp, link na Bio. Tenho curtido "first time hearing" – vídeos no YouTube de pessoas reagindo à primeira vez que escutam alguma canção, como In The Air Tonight, de Phil Collins, aos ouvidos de dois adolescentes gêmeos americanos.
O samba do real é sincopado, perdeu a nervura. Samba sincopado é o da letra meio fluída, você não entende muito o que se canta, mas a canção flui, pegando ritmo. Um troço meio bebum, meio transe de Orixá.
E Oxalá? É orixá e "tomara" em portugália!
Infância vem da época de Descartes, onde tudo era lógica: a criança é o in-fono, não-fono, aquele-que-não-sabe-falar. E, depois, a doença, o adolescere, adoecimento, o adolescente. Adulto, traição, o adultério, adulterado. Idoso, o que foi, o ido… e o senil – senhor – por isso em Roma há cinco mil anos só velho poderia ir ao Senado (sênior)!
Até 2002 o filme se chamava Guerra nas Estrelas. Depois, trade mark, virou regra chamar de Star Wars. Eu gostava tanto de Guerra nas Estrelas…
Surfando nesses léxicos em flush neo-wave, então o que é exatamente hub? Lab? Crush é ridículo. Massa ainda se fala? Supimpa, às pampas? Prafrentex é ótimo. Curfew, achatar a curva? Em Portugal, home office é teletrabalho. Só não me diga que você tem um call, é ligação, cidadão sem carteirada! Binge-watching no streaming, morri.
O cumpade Washington já dizia antes de Game of Thrones: Sabe de nada, inocente. Depois que copiaram com o You know nothing, John Snow. Palavra bonita mesmo é yanomami, tupy, como li esses dias que hospital é "lugar-que-corta-gente".
Beleza também há no vocábulo chinês, antigo e poético, "cérebro" é mar da medula. Mais bonito ainda no japão, há um sexto sentido do gosto, quando o alimento transcende o ácido, amargo, doce ou salgado, e está delicioso, saboroso e agradável, o gosto é Umami.
Os gregos não sabiam que língua estranha era aquela do Norte, pareciam dizer simplesmente bar bar bar, então daí veio bárbaro.
O gaúcho resume "barbaridade!" ao charmoso bah!
Pôr-do-sol, entardecer… no interior de Minas, tardança…
Nobre como uma princesa, nossa língua pertence a esta ramificação da árvore genealógica: língua românica flexiva ocidental originada no galego-português, falada no Reino da Galizia e no norte de Portugal.
Referência de garbo, é gentilmente apelidada de Flor do Lácio, a última flor, a última língua, a última filha do latim vulgar falada pelos soldados da região italiana do Lácio.
"A inculta e bela (…) esplendor e sepultura" nos versos do poeta parnasiano Olavo Bilac.
É língua oficial em Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné Equatorial, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipie.
É língua oficial em Macau, na China, Timor-Leste e Goa, na Índia.
Igualmente numa cidade da Malásia, enclaves na ilha das Flores na Indonésia, Batticaloa no Sri Lanka e nas ilhas ABC no Caribe.
A combinação soma 80% de palavras de origem francesa e italiana e 20% de origem celta, alemã e árabe.
São 800 palavras do árabe que falamos sem saber.
Almofada e almoço, por exemplo.
Nas palavras escondem-se todos os segredos. Se você tem o poder da palavra, jamais precisará de um advogado.
Sider, de siderúrgica, quer dizer ferro. Acreditava-se que o céu, o firmamento, era uma placa salpicada de estrelas que reluzem como ferro, o espaço sideral.
Acreditava-se que um dia a placa sideral cairia sob nossas cabeças. Acreditar nos astros, no destino escrito nas estrelas é, portanto, con-sider-ação. Se você não acredita na narrativa que o cosmos oferece – e quer fazer apenas o que sua alma comanda – você está em de-sider-ação: origem da palavra desiré, desire, deseo, desejo.
A órbita celeste é a origem não só da vida, como da linguagem.
Considerar é permitir que sua vida seja astral, astrada, seguindo o caminho das estrelas.
Se você está por fora dos astros, você está des-astrado.
O contrário de caos é cosmos.
O contrário de vício é virtude.
Um filme:
Palm Springs (2020), Max Barbakow. Comédia surreal da Hulu, remete a um dos meus favoritos, Groundhog's Day. Besteirol inteligente, mexe até com física quântica: imersivo o suficiente para você se desligar do nosso… desmundo.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
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