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GV CULT - Criatividade e Cultura

Glauberianas (II): o deus negro & o diabo louro.

GvCult - Uol

30/04/2019 07h01

Cangaceiros do bando de Virgulino Lampião (centro). Foto: Benjamin Abrahão Botto.

Por: Bernardo Buarque de Hollanda

"A ilha não existe.

A gente traz ela dentro da alma"

Prédica do beato Sebastião

Para o bando de Lampião e para os grupos constituintes do cangaço, o sonho representa um importante presságio das venturas e dos infortúnios reservados ao porvir. Significa um anúncio fatal. Nos dias de hoje, passados 55 anos, o filme Deus & o diabo na terra do sol (1964) abala-nos da mesma forma. Qual raio inesperado, ao reluzir, desnuda a condição presente, expressando a necessidade de uma revelação a que somente o cinema, linguagem do som e do movimento, pode dar acesso.

Assim como Antônio Conselheiro em Canudos, que vaticinou a reaparição de El Rei Dom Sebastião e todo o seu exército sobre as ondas do mar, mito lusitano que marcou de maneira indelével a história moderna de Portugal, Glauber Rocha, em Deus e o diabo transpõe as prédicas milenaristas para o zênite da fictícia Monte Santo. Um cimo de onde um beato e seu séquito são capazes de vislumbrar, pela luz da fé e não pela cegueira dos olhos, a outra margem do horizonte, em que jaz uma ilha, em cujas terras grassa o mato verde, em cujos rios escorre leite para as crianças beberem, onde os cavalos comem as flores e a poeira vira farinha.

Rumo a esse lugar mirífico, em um rincão ignoto do sertão nordestino, peregrinam e afluem sertanejos em busca da salvação. Reconstituindo o lugar da utopia na trajetória mística de insurgências populares e de levantes históricos nacionais, como Contestado e Pedra Bonita, o cineasta compõe a alegoria sertão/mar, agudamente analisada por Ismail Xavier. Desta maneira, evidencia a irracionalidade da condição inóspita do povo, cuja sina passa ao léu das autoridades, dos coronéis e das instituições religiosas, para quem a única solução é dizimar os fanáticos da "Jerusalém de taipa", para falar com Euclides da Cunha, ao se referir à resistência da barbárie impetrada em nome da civilização. No ato de resistir compreende-se a ira e a erupção dos fiéis e do santo Sebastião, revoltado contra a "República da desgraça".

O genocídio cometido em Monte Santo pelas forças da ordem deixa apenas dois sobreviventes, o vaqueiro Manuel e sua mulher Rosa, personagens de início passivos, que entregam seus destinos a uma busca hesitante e angustiosa. Guiados pelo cego Júlio, pois "cego vê a verdade no escuro e assim canta no âmago o sentimento das coisas", caminham pelas veredas e labaredas do sertão abrasante, até se encontrarem com remanescentes do cangaço. O líder do bando, o capitão Corisco, assistiu à morte de Lampião em Angico, Sergipe, no ano de 1938, e, imbuído do espírito de vingança, prepara-se para o duelo contra as tropas e os "macacos" do governo. Confiante na redenção, Corisco – "cangaceiro de duas cabeças: uma matando, a outra pensando" – encarna a virulência da condição humana, que faz eclodir o misticismo, o banditismo e a pilhagem.

Invocando a lança de São Jorge e a proteção do padre Cícero Romão Baptista, além das figuras bíblicas do Velho Testamento, Abraão e Noé, Corisco comete atrocidades e perversidades, contra os coronéis da região, sendo a mais cruel o "desfloramento" das suas filhas e esposas. Seguro de que "o destino é maior do que a morte", o cangaceiro aguarda o embate final sem temer Antônio das Mortes. Este, um capanga subordinado à Igreja e aos fazendeiros locais, vê sua tarefa como uma fatalidade do seu ser, que cresceu assistindo à matança e à injustiça e que agora traz fincada a sede de vingança em sua alma.

Mais uma vez sucede o extermínio. Manuel e Rosa saem novamente em fuga desesperada, cambaleante, sem direção certa. O desfecho do filme encerra um enigma: o casal acaba por deparar-se com o mar, com o litoral, com a imensidão das águas. Realização da profecia? Gláuber Rocha nada responde. Lança o espectador naquele fluxo de imagens oceânicas, em meio à trágica música de Heitor Villa-Lobos.

O tom, a um só tempo, lírico-épico que o cineasta baiano imprimiu à narrativa de Deus & o diabo na terra do sol, no início dos anos 1960, representou uma espécie de revolução cinematográfica brasileira e um marco mundial na história da sétima-arte. Quem sabe, hoje, esta película de Gláuber Rocha possa nos comover tanto quanto a simples aparição de um raio, de uma luz, de um fulgurante fenômeno da criação:

"Sebastião nasceu do fogo no mês de fevereiro,

Anunciando que a desgraça ia queimar o mundo inteiro,

Mas que ele podia salvar quem seguisse os passos dele,

Que era santo e milagreiro, que era santo, que era santo

Que era santo e milagreiro"

Cantiga de Gláuber Rocha e Sérgio Ricardo

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.