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GV CULT - Criatividade e Cultura

José Lins do Rego, homem das letras e dos desportos (II)

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13/06/2017 00h12

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"José Lins do Rego via os jogadores não só como atletas, mas como atletas-soldados…"

Em um caminho análogo ao de Villa-Lobos e ao de vários modernistas, José Lins do Rego irá exercer suas funções nos órgãos estatais representativos dos esportes. A ética será uma questão basilar no desempenho de seu cargo e terá repercussão em seus apontamentos como cronista esportivo. José Lins do Rego endossava a ideia que chegava ao Brasil desde o início do século XX, que atravessava a visão otimista de Coelho Neto e que seria consolidada pela atividade de Mário Filho, segundo a qual o futebol era um esporte moderno, promotor de civilização.

Nos moldes idealizados pelos europeus, compartilhava-se a crença no aperfeiçoamento do indivíduo e na afirmação nacional por meio dos esportes. Os esportes estimulavam a um só tempo a educação física e o espírito cívico, tornando possível a equiparação da nação brasileira aos países civilizados da Europa.

Todo o universo do futebol seria perpassado pelos aspectos pedagógicos, disciplinares e propedêuticos da moral esportiva: jogadores, torcedores, técnicos, cronistas e dirigentes. Aos jogadores, caberiam vários procedimentos, que iam do empenho e da ascese nos treinos à lealdade e à humildade nas partidas; aos torcedores, caberia a contenção de seus ímpetos instintivos e de sua propensão à violência, sabendo perder e vencer conforme as circunstâncias; aos técnicos, caberia a diligência e a capacidade de comando; aos cronistas, malgrado suas inclinações clubísticas, caberia o senso de justiça e o cultivo da verdade; finalmente, aos dirigentes, caberia a probidade e a retidão inerentes à conduta de homens públicos.

Todos esses requisitos eram esperados no mundo do futebol. José Lins do Rego, consciente de suas atribuições como dirigente esportivo, enfatizava tais posturas e padrões de comportamento. Na condição de representantes da nação, José Lins do Rego via os jogadores não só como atletas, mas como atletas-soldados, expressão utilizada por José Lins do Rego em reportagem de primeira página do Jornal dos Sports do dia 07 de janeiro de 1945.

Assim se expressou por ocasião do campeonato sul-americano daquele ano, no Chile, quando assume a chefia da delegação brasileira, em sua fase preparatória, na cidade de Caxambu, em Minas Gerais, famosa por sua estação hidromineral. Neste sentido, a expressão atleta-soldado era tomada no sentido quase literal do termo, na medida em que, naquele período pós-45, José Lins do Rego saudava em suas crônicas jogadores como Perácio, recém-chegado da Segunda Guerra Mundial, na condição de pracinha da FEB (Força Expedicionária Brasileira).

Além da disciplina, o fator que condicionava a atuação dos jogadores era o espírito coletivo de fervor cívico, de representação nacional e de construção de uma imagem do país no exterior. A competição significava não apenas a disputa de um sucesso esportivo, mas, acima de tudo, a possibilidade de afirmação da nação brasileira.

José Lins do Rego via-se, dessa maneira, muitas vezes dividido entre a razão e a emoção, entre o seu papel social e a sua inclinação individual. Dada a sua posição de dirigente das entidades esportivas mais importantes do período, como a CBD e o CND, era a razão quem o guiava. A ética, o interesse público e o espírito cívico deviam orientar as ponderações do cronista a fim de que o futebol fosse um exemplo dos nossos padrões civilizatórios. A dimensão pedagógica e moral do futebol não poderia nunca ser deixada de lado, tendo em vista que ela contribuía para manter o senso de justiça e de racionalidade inerente aos princípios do esporte moderno.

O cronista esportivo possuía, para ele, uma função análoga à do homem público e à do legislador que, em sua atividade política e jurídica, deve se mostrar apto a discernir o que é justo do que é injusto, o probo do ímprobo, o lícito do ilícito; o cronista esportivo possuía ainda uma função análoga à do crítico, seja ele de literatura, de cinema ou de artes em geral – funções, diga-se de passagem, exercidas por José Lins do Rego no Rio de Janeiro –, que em sua atividade judicativa deve-se ater às qualidades intrínsecas à obra, sem se deixar afetar e embotar por veleidades de ordem pessoal.

Nesse sentido, em crônica intitulada Em honra do cronista, datada de 26 de agosto de 1952 e publicada no Jornal dos Sports, José Lins do Rego arrolava os itens imprescindíveis à cobertura ideal de uma partida de futebol: 1º) equilíbrio no desenrolar dos fatos; 2º) honestidade de crítica; 3º) modéstia do cronista.

A criação de uma crônica esportiva nos moldes preconizados pelo jornalismo de Mário Filho na década de 1930 estimulava o estabelecimento de uma relação dialógica entre o cronista e o leitor. A crônica esportiva constituía assim um espaço mais direto de mediação e de interlocução entre esses dois polos integrantes do universo esportivo e ademais dava oportunidade para a troca de contato do cronista com uma pluralidade de visões acerca de suas matérias e de seus comentários sobre as partidas de futebol.

Em outras palavras, tal relação facultava uma espécie de fórum público de opiniões, de bate-papo, de "conversa fiada" ou ainda de "cumplicidade lúdica", segundo expressão do historiador Ilmar Rohloff de Mattos. Trata-se de marcas peculiares da crônica como gênero a um só tempo literário e jornalístico, numa postura espontânea, despojada e recreativa que pode encontrar paralelo e termo de comparação na prática esportiva com a ideia de pelada ou de bate-bola informal.

Esse processo vai ter seus desdobramentos nas décadas de 1940 e 1950 com a fixação da crônica esportiva como um gênero com formato próprio e com feição específica. Para tanto, Mário Filho vale-se de figuras de destaque na composição de sua equipe de cronistas no Jornal dos Sports. O staff incluía repórteres de alto gabarito, como Antônio Olinto, Dão, Geraldo Romualdo da Silva, Pedro Nunes e Leonam Pena – este último autor de um pioneiro Dicionário popular de futebol: o ABC das arquibancadas (1951), em que, após uma pesquisa de 7 anos, coligiu e incorporou ao léxico esportivo uma vasta quantidade de locuções futebolísticas, num empreendimento que Mário Filho chamou de "o registro civil da gíria".

O jornal também abrangia conhecedores da crônica esportiva internacional, como Albert Laurence, Giampoli Pereira e Willy Meisl. Este último, austríaco naturalizado inglês, amigo de José Lins do Rego, publicou em 1955 o negligenciado clássico Soccer revolution. Nele, segundo o sociólogo Richard Giulianotti, o autor sustenta a tese de que o declínio internacional do futebol britânico nas décadas de 1930 e 1940 ocorreu em função do seu isolamento político e do seu insulamento esportivo perante a FIFA e os campeonatos intercontinentais.

O Jornal dos Sports incluía também em sua equipe caso singular de uma cronista esportiva, Florita Costa, mulher de Flávio Costa, o famoso técnico do Flamengo, do Vasco da Gama e da seleção brasileira. O elenco compreendia ainda prestigiados dirigentes das entidades desportivas nacionais, como João Lyra Filho, Mário Pollo e Vargas Netto, este último também escritor e sobrinho de Getúlio Vargas, o que conferia um peso ainda maior para a promoção da crônica esportiva e para a efetivação de um canal mais direto de comunicação não só entre o torcedor e o cronista, como entre o torcedor e os principais representantes políticos do futebol brasileiro.

Observe-se que o difuso pensamento sociológico ou para-sociológico de João Lyra Filho, citado acima, foi estudado por Simoni Lahud Guedes (1999). Em seu estudo, a antropóloga baseia-se em dois livros publicados pelo ex-presidente do Conselho Nacional de Desportos, Taça do mundo – 1954 e Introdução à sociologia dos desportos (1973). Já na pesquisa que realizamos juntos aos periódicos do Jornal dos Sports, encontramos um artigo de Lyra Filho, "Sinais de sociologia desportiva", publicado a 10 de abril de 1949, que muito contribui para a compreensão das influências intelectuais de sua geração à época, em que saltam à vista as referências a Gilberto Freyre e a Oliveira Viana.

Destarte, nosso ponto central assinala que escritores como José Lins do Rego eram a um tempo cartolas e epígonos desse específico projeto de crônica esportiva pautado por Mário Filho. Este, aos poucos, vai-se tornando hegemônico nos periódicos cariocas. Mais do que implicações quanto à dominação política, cumpre verificar que, do ponto de vista do desenvolvimento de uma crônica esportiva moderna, estes cronistas encontravam oportunidade para forjar um estilo narrativo próprio, para refletir de forma livre sobre temas os mais variados e para exprimir alguns aspectos de sua própria personalidade.

À crônica objetiva, fria e impessoal das primeiras décadas do século, limitada à informação, sobrepunha-se, então, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, uma crônica esportiva de cunho pessoal, abrindo margem para a narração, para a manifestação da subjetividade do cronista e para a formação de um estilo característico de cada um deles.

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.