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GV CULT - Criatividade e Cultura

As Ruínas de Georg Simmel: um epílogo da natureza

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11/10/2016 05h50

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"Durante anos um homem povoa um espaço com imagens, províncias, reinos, montanhas, baías, navios, ilhas, peixes, quartos, instrumentos, estrelas, cavalos e pessoas.

Pouco antes de morrer, ele descobre que o paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto".

Jorge Luís Borges

"O que um tema à primeira vista tão insólito quanto a decadência arquitetônica tem a dizer sobre a condição humana? "

Conclui-se a seguir com o quarto e último texto das chamadas "simmelianas", série em que abordei até aqui a figura do sociólogo Georges Simmel, cuja formação filosófica, mais propriamente a filosofia da arte, foi posta em relevo. Hoje, quero deslocar a discussão da obra de arte pictórica para a obra de arte arquitetônica. A meditação de Simmel em relação às ruínas reforça as questões já assinaladas no texto da quinzena passada sobre a representação dos Alpes na pintura europeia de final do século XIX.

O motivo estético para entender as ruínas continua a ser a centelha do pensador alemão para a compreensão do ser humano: o que a arquitetura pode expressar sobre as forças criativas e passivas da alma? O que um tema à primeira vista tão insólito quanto a decadência arquitetônica tem a dizer sobre a condição humana? Por que o domínio do homem sobre a natureza pode sofrer simbolicamente um novo revés diante de edificações decadentes?

Se o triunfo da arquitetura parece residir no poder de afeiçoar e de amoldar a matéria aos desígnios do espírito anímico do homem, as ruínas constituem a inversão dessa correlação de forças. O meio natural, até então inerte e domesticado pelo engenho humano, começa paulatinamente a corroer e a corromper a forma impingida pela matéria-prima. Cumpre ressalvar que as ruínas abordadas por Simmel não são aquelas destruídas de modo intencional pelo homem, em razão de guerras ou de atos destrutivos, por exemplo. As ruínas simmelianas são aquelas desintegradas por força e ação tácita da natureza, seja pelo abandono ou omissão humanos seja pela passagem corrosiva do tempo.

O fito do arquiteto ao projetar e soerguer uma igreja ou um palácio, um castelo ou um aqueduto, tem seu fim quando, entregue à própria sorte, a matéria se decompõe e se auto esfacela, retornando ao estado originário. A falta de sentido aparente das ruínas cede terreno, todavia, à contemplação de uma nova totalidade caótica, passível, entrementes, de fruição estética. Um equilíbrio distinto se reconfigura na fusão entre a obra do homem e a obra da natureza. A sensação de paz exarada pelas ruínas é um aspecto fascinante para Simmel, pois o ruir vai-se deixando integrar, pouco a pouco, aos demais elementos da paisagem, em decorrência do seu desgaste físico e crômico. As ruínas encantam também porquanto exercem o papel de testemunho da história, capaz de evocar, nos fragmentos do presente, os vestígios da vida pregressa.

A tragédia cósmica do homem ante as forças da natureza não se encerra no confronto entre a vontade do espírito e a ação subterrânea da matéria. A sondagem de Simmel não se atém às relações objetivas entre uma e outra, mas tenciona detectar as implicações subjetivas para a alma, fim último de suas indagações interiores. Embora o homem não tenda inexoravelmente à decadência, divisam-se nele forças antagônicas semelhantes – construtivas e destrutivas – ao processo descrito nas ruínas.

A oposição entre os elementos positivos e negativos, entre as imagens de ascensão e queda, faz com que o homem se caracterize por uma tensão e dinâmica interna. Ser sempre inacabado, sempre sujeito ao influxo do jogo de forças contrapostas, as energias da anima protagonizam uma luta dos instintos vitais com as capacidades intelectivas e racionais do homem, o que vai de encontro, nesse sentido, aos dilemas da vida mental na metrópole.

Mas o interessante do ensaio simmeliano sobre as ruínas é que ele recoloca tal discussão em termos de uma fissura latente do ser humano, para além das suas vicissitudes histórico-pessoais:

"No interior de nossa alma, forças que só podemos designar por meios da metáfora espacial do impulso para cima estão permanentemente construindo, mas o que elas fazem vê-se também ininterruptamente suspenso, desviado e demolido por tendências que cabe caracterizar como o elemento obscuro e vil, e no mau sentido 'só naturais', que atuam em nosso seio. A forma de nossa alma é em cada momento o resultado da maneira e da proporção em que se combinam essas duas classes de força". (Simmel, Sobre la aventura: ensayos filosóficos, Barcelona: Ediciones Península, 1988, p. 122, tradução livre de minha autoria).

A alternância entre o elemento construtor e o obscuro da alma humana é uma proposição que permite remeter o autor alemão ao próprio debate teórico do pensamento moderno, mormente aquele que se debruça sobre o sujeito solar e sujeito fraturado cartesiano. Simmel contribui, a nosso juízo, com uma inovação de ordem metodológica. Deve-se destacar de que maneira o autor infere amplos debates filosóficos sobre o homem a partir de temas comezinhos. Às ruínas e às montanhas alpinas, poder-se-ia acrescentar temáticas prosaicas como a porta, a ponte, a moda e até mesmo a asas de um jarro.

A opção ensaística de Simmel em parte menos conhecida de sua obra permite, pois, uma revisão do conjunto de seus escritos, com o reconhecimento da importância da filosofia da arte em suas inquietações intelectuais, bem como possibilita afirmar seu lugar de ponta dentre os analistas da subjetividade na tradição filosófica moderna e contemporânea.

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.