Topo

GV CULT - Criatividade e Cultura

O filho eterno: um ensaio sobre o romance de Cristovão Tezza

GVcult

04/10/2016 06h31

Francine Carvalho Pietrobom

Vinicius Esposito

"…moldar as fracassadas expectativas e sentimentos do pai frustrado com seu filho 'diferente'."

"— Acho que é hoje – ela disse. – Agora – completou, com voz mais forte, tocando-lhe o braço, porque ele é um homem distraído". Assim, Cristovão Tezza inicia "O filho eterno", no qual é contada a história de seu filho com síndrome de Down. De início, o leitor se surpreende pela opção de Tezza pelo romance frente à autobiografia, visto que em momento algum o caráter íntimo da novela é disfarçado. Contudo, sob tal égide, o autor se isenta do comprometimento com a verdade, podendo delinear livremente a história de um pai e seu problema – o seu filho deficiente – sem os freios da verossimilhança.

O próprio autor afirma que considera um livro "maduro para começar a escrever" quando encontra a primeira frase. De fato, a primeira frase de "O filho eterno" deixa claro ao leitor o que esperar do pai protagonista: alguém tão distraído e dentro de si que deve ser tocado para atentar à mãe prestes a parir. Essa introspecção marca todo o roteiro, chegando a níveis tão egoístas que a leitura se torna frequentemente pesada. Contudo, quando se abstrai o sentimento de um pai que acaba de ter um filho deficiente para o sentimento de vergonha comum a todos indivíduos, nota-se que a reação do protagonista deixa de ser tão árdua.

A vergonha decorrente de algo que falha em corresponder às expectativas da sociedade é uma das principais forças motrizes do indivíduo. No caso de um filho, a criatura sagrada e inatingível da qual é esperada a perpetuação não só dos traços genéticos, mas intelectuais dos pais, a não correspondência com o padrão esperado induz o pai às mais desesperadas medidas e pensamentos. A não coincidência da coisa com a ideia que se faz dela, como o próprio personagem fala, o leva a cogitar abandonar a criança e a mulher. "Nada do que não foi poderia ter sido", repete o pai inúmeras vezes no texto.

A despeito do papel claramente central da relação entre pai e filho, relatada de maneira unidirecional pelo primeiro, surge, na obra de Tezza, uma outra relação digna de análise. Como Wander Mello Miranda (2011) nota, há uma tendência na literatura brasileira recente de eleger a cidade como o plano de fundo para a discussão literária das subjetividades contemporâneas. Miranda ressalta ainda que a cidade supera o seu papel de provedora de temáticas sociais conturbadas, como a violência e o tráfico de drogas, e assume a posição de foro para depicção das relações privadas. Desse modo, a relação entre a cidade e a dupla pai-filho merece atenção, não só por fornecer o palco para a história de Cristovão Tezza, mas também por moldar as fracassadas expectativas e sentimentos do pai frustrado com seu filho "diferente".

Vale notar que a relação entre a urbe e os personagens principais de "O filho eterno" se verifica tanto em sua denotação como em sua conotação. Em termos literais, é claro, nota-se o papel primordial que a cidade assume no livro como o cenário de quase todas as cenas relatadas, com descrições vívidas e íntimas que proporcionam ao leitor um contato quase que direto com os centros urbanos brasileiros.

Primariamente, o romance se passa em Curitiba, cidade natal dos personagens principais, demonstrando uma clara afeição do autor que, apesar de nascido em Santa Catarina, se mudou aos oito anos para a capital paranaense, pela cidade modelo. Ao longo do livro, o leitor é apresentado ao céu curitibano que fica "maravilhosamente azul" após a "neblina quase fria da manhã" ter se dissipado, céu que, segundo o protagonista, "é um dos melhores do mundo". Ou então o leitor é transportado para a adolescência rebelde e ingênua do pai, "cheirando alucinógenos" nas praças curitibanas.

Não obstante, São Paulo e Rio de Janeiro possuem papéis relevantes na história e proporcionam ao pai pensamentos que ilustram a relação da cidade com os personagens assim como previsto por Wander Mello. O Rio de Janeiro, cuja principal função na história é a de sediar uma clínica que oferece um "tratamento completo" de crianças com síndrome de Down, relembra o pai de seus tempos de quase marinheiro mercante e salta aos olhos do protagonista pela "delicadeza dos recortes contra o céu azul" e pela "amplidão dos espaços que se abrem para o mar". Como se a fronteira entre terra e mar delimitada pela praia definisse a fronteira entre indivíduo e mundo, o relevo carioca leva o pai a crer que todos estão no limite de si mesmos, esperando o tempo agir e definir a maneira como as coisas acontecem. Essa falta de controle da pessoa sobre o seu destino, por fim, ecoa no "envelheçam" de Nelson Rodrigues.

São Paulo, por sua vez, local de consultas médicas e de passagem dos tempos da trupe de teatro, agrada ao pai por motivos opostos aos cariocas: o personagem aprecia a "brutalidade humana" da metrópole, que permite pouco senão nenhum espaço para a persistência da natureza. Na capital paulista, a escala do mundo desprovê a pessoa de sua essência humana: "são ideias e projetos que se movem, não pessoas". Assim, a visão do personagem sobre São Paulo remete a outro aspecto essencial da obra, recebido "de maneira bovina" pelo pai de Felipe quando ele percebe que nem sempre "as coisas coincidem com as ideias que fazemos delas".

Para remeter novamente às ideias de Wander Mello, a cidade reflete a sociedade e com ela vem a onda de construções e padrões impostos ao indivíduo. Deixando de serem si mesmas, as pessoas tornam-se suas profissões, suas ambições frequentemente materiais. Nota-se que o protagonista desde o início mostra seu ressentimento quanto a tais imposições, seja pelo fato de ser um escritor "incompreendido", por ser efetivamente sustentado pela mulher – que tem um "emprego de verdade" – ou por ter que ligar para os parentes após o nascimento do filho. Obviamente, o maior choque entre coisa e a ideia que se tem da coisa ocorre com a descoberta de que Felipe possui uma deficiência. Neste momento, o pai, antes sempre se vendo como a vítima ou o ignorado, cai do pedestal por ter uma ideia de filho que não é e nunca será Felipe.

Dessa maneira, restam poucas dúvidas a respeito do papel marcante da interação entre cidade e os personagens principais em "O filho eterno". Nota-se que os centros urbanos, cada um de sua maneira, produzem impressões muito bem descritas no protagonista, refletindo aspectos fundamentais da visão de mundo do autor, mesmo o pacto com a verdade de uma autobiografia não sendo assumido. Contudo, apesar da falta de controle do indivíduo sobre seu destino proporcionada pelo Rio de Janeiro, ou da alienação da essência humana invocada pela brutalidade visual de São Paulo, pode-se tratar dessa relação entre cidade e os personagens como a interação entre a sociedade e duas pessoas em conflito com ela.

A cidade, vista como a materialização de todos os padrões e preconceitos embutidos naquilo que se tornou a sociedade moderna, não prevê um filho deficiente. O esperado seria uma criança normal: que brincasse, que se desenvolvesse motora e intelectualmente, que fosse fisicamente "parruda" (como o pai caracterizava Felipe, antes mesmo de vê-lo no hospital). Assim, tem-se, na obra de Tezza, um pai que ao mesmo tempo se considera isolado do "sistema", mas que também procura uma maneira de se incluir e incluir seu filho nele.

"O filho eterno" é uma obra que proporciona ao leitor incessantes momentos de questionamento. Por se tratar do ponto de vista de um pai com um filho deficiente, a leitura naturalmente não é fácil. Contudo, o desnorteamento do pai perante aquele filho que jamais será o que ele esperava é contado de modo a deixar clara a influência da sociedade nas expectativas individuais, assim como elucida o sentimento de vergonha como uma das forças motoras das pessoas. Suscitando diferentes percepções de mundo em distintas cidades brasileiras, a relação entre a urbe e os protagonistas é um aspecto primordial da obra de Cristovão Tezza, o que lhe permite tecer o cenário para a complicada relação entre Felipe e seu pai.

Edição: Enrique Shiguematu

Francine Carvalho Pietrobom e Vinicius Esposito são alunos de Economia, da Fundação Getúlio Vargas . *Texto desenvolvido como parte das atividades da disciplina "Interpretações do Brasil" (Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas – FGV/EESP), ministrada pelo professor Bernardo Buarque de Hollanda

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.