Simmel: o artista e a paisagem
Por Bernado Buarque de Hollanda
A procura por uma definição de paisagem é o ponto de partida de Georg Simmel (1858-1918). Como o espírito humano, por meio dos sentidos e da cognição, é capaz de dar forma a um conjunto de elementos naturais disformes e dispersos sobre a superfície terrestre? Se a natureza é a soma ininterrupta de uma totalidade espacial e temporal em que o homem se percebe envolvido, como é possível ao ser humano ter a consciência de uma paisagem precisamente delimitada
A relação entre a natureza e a paisagem resulta de que a primeira é um todo indivisível, polimorfo e fluido, enquanto a segunda corresponde a uma parte singular que se desgarrou dessa unidade, adquiriu autonomia cognoscitiva e constituiu uma centralidade própria. Porém, entre uma e outra subjaz sempre uma tensão. Para Simmel, a adição isolada de objetos naturais em uma faixa territorial não significa a existência de uma paisagem. Esta consiste na fixação de um campo ótico, visual e sensorial pelo homem, tendo por base um específico conceito unificador.
O sentimento de paisagem, reflexo de um estado anímico da alma, é uma manifestação típica da modernidade, ao contrário do sentimento de natureza, presente em outras épocas e povos. A individuação das formas de existência e de percepção paisagística, bem como sua separação da natureza, proporcionou a tendência da cultura moderna para a fragmentação, mediante a configuração de novos objetos dotados de relativa independência.
No livro "El individuo y la libertad: ensayos de crítica de la cultura" (Barcelona: Edições Península, 1986), Simmel identifica o corolário desse processo, em que a paisagem passa a aparecer vinculada à obra de arte pictórica:
"Não se deve surpreender que nem a Antiguidade nem a Idade Média tiveram sentimento algum de paisagem; precisamente o objeto mesmo ainda não existia naquela firmeza anímica e conversibilidade autônoma, cujo logro final confirmou então e, por assim dizer, capitalizou o surgimento de pintura paisagística". (tradução minha, p. 177).
Assim, uma aproximação possível para se chegar a uma identificação mais precisa da paisagem é a sua remissão à experiência da arte, em particular da pintura. Valendo-se de um entendimento kantiano, o artista é tido por Simmel como um ser que condensou em sua prática mimética a gama de fenômenos diversos, oriundos da vida cotidiana. A atividade artística, bem como a religiosa ou a científica, tornou-se capaz de extrair uma conformação sintética da caótica corrente impressa pela natureza aos sentidos.
A singularidade do pintor reside na capacidade de contemplar a natureza e de recriá-la em um uno horizonte ótico uno. A reprodução de uma imagem de mundo numa tela pelo homem não ocorre em função da aplicação de um simples procedimento técnico, tema secundário nas preocupações simmelianas. A contemplação de uma paisagem na modernidade deriva do desenvolvimento subjetivo deste sentimento projetado pelo ser humano e da sua justaposição ao dado objetivo da realidade. Isto configura uma unidade de sentido.
Nas palavras do próprio autor, retiradas do mesmo livro acima citado:
"O artista é não só aquele que consuma este ato conformador de mirar e de sentir com tal pureza e força que absorve em si plenamente a matéria natural dada e cria de novo como que a partir de si; entretanto, nós, os restantes, permanecemos mais ligados a esta matéria e, nesta medida, todavia nos acostumamos a perceber este e aquele elemento isolado ali onde o artista realmente só vê e configura a 'paisagem'". (Tradução minha, p. 108).
Na próxima quinzena, continuaremos a tratar de Simmel.
Edição Enrique Shiguematu
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