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GV CULT - Criatividade e Cultura

Simmel: o artista e a paisagem

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13/09/2016 06h00

Por    Bernado Buarque de Hollanda

"A singularidade do pintor reside na capacidade de contemplar a natureza e de recriá-la em um uno horizonte ótico uno. A reprodução de uma imagem de mundo numa tela pelo homem não ocorre em função da aplicação de um simples procedimento técnico…" Imagem: http://www.painttheparks.com/

A procura por uma definição de paisagem é o ponto de partida de Georg Simmel (1858-1918). Como o espírito humano, por meio dos sentidos e da cognição, é capaz de dar forma a um conjunto de elementos naturais disformes e dispersos sobre a superfície terrestre? Se a natureza é a soma ininterrupta de uma totalidade espacial e temporal em que o homem se percebe envolvido, como é possível ao ser humano ter a consciência de uma paisagem precisamente delimitada

A relação entre a natureza e a paisagem resulta de que a primeira é um todo indivisível, polimorfo e fluido, enquanto a segunda corresponde a uma parte singular que se desgarrou dessa unidade, adquiriu autonomia cognoscitiva e constituiu uma centralidade própria. Porém, entre uma e outra subjaz sempre uma tensão. Para Simmel, a adição isolada de objetos naturais em uma faixa territorial não significa a existência de uma paisagem. Esta consiste na fixação de um campo ótico, visual e sensorial pelo homem, tendo por base um específico conceito unificador.

O sentimento de paisagem, reflexo de um estado anímico da alma, é uma manifestação típica da modernidade, ao contrário do sentimento de natureza, presente em outras épocas e povos. A individuação das formas de existência e de percepção paisagística, bem como sua separação da natureza, proporcionou a tendência da cultura moderna para a fragmentação, mediante a configuração de novos objetos dotados de relativa independência.
No livro "El individuo y la libertad: ensayos de crítica de la cultura" (Barcelona: Edições Península, 1986), Simmel identifica o corolário desse processo, em que a paisagem passa a aparecer vinculada à obra de arte pictórica:

"Não se deve surpreender que nem a Antiguidade nem a Idade Média tiveram sentimento algum de paisagem; precisamente o objeto mesmo ainda não existia naquela firmeza anímica e conversibilidade autônoma, cujo logro final confirmou então e, por assim dizer, capitalizou o surgimento de pintura paisagística". (tradução minha, p. 177).

Assim, uma aproximação possível para se chegar a uma identificação mais precisa da paisagem é a sua remissão à experiência da arte, em particular da pintura. Valendo-se de um entendimento kantiano, o artista é tido por Simmel como um ser que condensou em sua prática mimética a gama de fenômenos diversos, oriundos da vida cotidiana. A atividade artística, bem como a religiosa ou a científica, tornou-se capaz de extrair uma conformação sintética da caótica corrente impressa pela natureza aos sentidos.

A singularidade do pintor reside na capacidade de contemplar a natureza e de recriá-la em um uno horizonte ótico uno. A reprodução de uma imagem de mundo numa tela pelo homem não ocorre em função da aplicação de um simples procedimento técnico, tema secundário nas preocupações simmelianas. A contemplação de uma paisagem na modernidade deriva do desenvolvimento subjetivo deste sentimento projetado pelo ser humano e da sua justaposição ao dado objetivo da realidade. Isto configura uma unidade de sentido.
Nas palavras do próprio autor, retiradas do mesmo livro acima citado:

"O artista é não só aquele que consuma este ato conformador de mirar e de sentir com tal pureza e força que absorve em si plenamente a matéria natural dada e cria de novo como que a partir de si; entretanto, nós, os restantes, permanecemos mais ligados a esta matéria e, nesta medida, todavia nos acostumamos a perceber este e aquele elemento isolado ali onde o artista realmente só vê e configura a 'paisagem'". (Tradução minha, p. 108).

Na próxima quinzena, continuaremos a tratar de Simmel.

 Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.