Topo

GV CULT - Criatividade e Cultura

O cinema vai às Olimpíadas (IV): Paris, 1924

GVcult

16/08/2016 06h00

Carruagens de Fogo, de Hugh Hudson (Inglaterra, 1981, 123 min.)

Por     Luigi Bisso e Bernado Buarque de Hollanda

Ao longo do primeiro semestre de 2016, uma parceria entre a Fundação Getúlio Vargas, por meio do Laboratório de Estudos do Esporte (LESP/CPDOC), e a Fundação Casa de Rui Barbosa, promoveu o ciclo de filmes e debates "As Olimpíadas vão ao Cinema".

A série compreendeu a exibição de alguns dos melhores filmes sobre a temática escolhida, seguida de debates com reconhecidos especialistas no tema de esporte e na área de cinema, como Hernani Heffner, Mônica Kornis, Victor Melo e Gilmar Mascarenhas.

Sendo assim, com o início dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, vamos aqui também nessa coluna tecer comentários e compartilhar nossas impressões sobre os filmes exibidos e debatidos com o público presente.

*

A cada quatro anos, o mundo estanca para assistir à encenação das Olimpíadas de verão. O milenar festival grego é mais do que uma competição entre os maiores atletas do planeta. As olimpíadas almejam a transcendência. Homens e mulheres imolam seus corpos e suas mentes no limite máximo da resistência física. Com tal imolação, tornam-se exemplos e modelos de um esforço humano que se imagina transcendente, o mais próximo da perfeição a que se supõe chegar. As olimpíadas são, pois, para os atletas, mais que um torneio; trata-se da oportunidade de provar para si e para o mundo a superação de suas capacidades corporais.

"Cada um dos personagens possui motivações próprias para participar do evento esportivo."

A ficção fílmica Carruagens de fogo, do diretor inglês Hugh Hudson, exibida em princípios da década de 1980, procura capturar com perfeição imagética esse esforço, essa tenacidade de que o esporte é capaz e sua obsessão pela perfeição. O filme retrata a história de dois corredores britânicos, Eric Liddell e Harold Abrahams, seus preparativos e sua participação nas Olimpíadas de Paris, em 1924.

Cada um dos personagens possui motivações próprias para participar do evento esportivo. Liddell, um reconhecido atleta escocês, entra em uma batalha interna por sua religiosidade, manifesta através de seu desejo em correr e competir por seu país. Já Abrahams, um judeu descendente de poloneses, utiliza a corrida, e a obsessiva busca perfeccionista, para superar seus traumas com o antissemitismo sofrido no decorrer de sua vida. Outros corredores britânicos são apresentados durante o filme, porém na condição de coadjuvantes, não de protagonistas.

A película aborda assim desportistas nos primeiros tempos das modalidades olímpicas. Vistos nos dias de hoje, parecem-nos sem dúvida seres pueris. À época, a prática esportiva era, em sua maioria, uma atividade amadora e universitária. As tentativas de profissionalização eram entendidas como deturpação, como vulgarização do espírito olímpico. Este entendimento fica claro na cena em que o personagem Abrahams é levado aos diretores de seu colegiado, na Universidade de Cambridge. Na sequência, é pelos mesmos duramente interpelado e criticado, uma vez que tivera a iniciativa de contratar um treinador profissional.

A prática dos esportes durante a década de 1920 mudava de maneira crescente, mas ainda guardava as marcas de sua gênese, associada às classes sociais mais abastadas, em especial as modalidades esportivas mais tradicionais. As olimpíadas eram dominadas, grosso modo, por países europeus e por atletas pertencentes à elite social de suas respectivas nações. O grupo de corredores da Grã-Bretanha, por exemplo, tal como retratado no filme, era composto quase que inteiramente por colegas de universidade, principalmente de Cambridge e Oxford. Apenas Liddell não frequentava os círculos letrados superiores, o que o colocava em uma posição de inferioridade face aos demais.

Ao contrário do que a primeira impressão aparenta, Carruagens de fogo não é um filme sobre o esporte, mas sobre a superação do indivíduo em situações limítrofes. O próprio evento da Olimpíada parisiense é secundarizado, em favor dos dramas pessoais dos personagens. Fica clara a intenção do filme dramatizar as vidas de Abrahams e Liddell, no momento de maior projeção de suas carreiras como corredores.

Não obstante, a narrativa do filme principia em 1919, cinco anos antes da competição mundial. Apesar de a Olimpíada de Paris não ser o foco central, ela é retratada com certo requinte de detalhes, o que torna possível uma interessante comparação entre as competições olímpicas da primeira metade do século passado e as competições contemporâneas. O evento olímpico de 1924 é apresentado de tal forma que se torna possível analisar diversos aspectos da cultura esportiva de então.

À diferença do que se observa hoje, o esporte, conquanto já popularizado, não se havia tornado uma cultura de massas e muito menos em um produto mercantil televisivo. Aliás, a televisão nem existia e ainda viria a ser inventada e difundida. Os atletas, conforme demonstrados na trama ficcional, não possuíam uniformes de tecidos especiais. Tampouco suas camisas estavam abarrotadas de logos, marcas e propagandas afins. Nas laterais do estádio, não é observado nenhum outdoor contendo imagens propagandísticas de empresas patrocinadoras.

Como dito acima, a profissionalização do esporte era vista com desdém pela alta sociedade europeia, que justamente compunha a maioria do corpo olímpico de atletas. O amadorismo daria a aura para aqueles que detinham uma habilidade maior e não para os que se consagravam a um treinamento técnico mais científico e rigoroso.

Outro elemento a sublinhar é a sensação novidadeira das Olimpíadas no decênio de 1920. Pode-se dizer que os Jogos Olímpicos reinventavam sua própria tradição, interrompida pela Grande Guerra, e ainda estavam longe de ser o espetáculo que hoje domina a programação das redes de televisão. Tanto o espetáculo da cerimônia de abertura e de encerramento quanto o ritual lendário do percurso internacional da tocha olímpica seriam inaugurados apenas na Olimpíada de 1936, em Berlim.

Percebida ainda como uma competição esportiva em estrito senso, sem sentido de espetáculo, o torneio desconhecia então o caráter de show business. Ainda havia uma percepção até certo ponto idealizada do evento. Para o país anfitrião, as olimpíadas eram um privilégio quase divino, bem distinto da enorme maquinaria financeira e gerencial dos últimos cinquenta anos. É evidente que lucros eram auferidos, mas a visão romantizada do evento aparecia com mais ênfase nos discursos dos dirigentes do COI de então.

A Olimpíada de 1924 ocorreu em um momento ainda mais sensível, em meio a uma Europa que havia pouco começara a se recuperar dos traumas da Primeira Guerra Mundial. A cena de iniciação dos jovens corredores na Universidade de Cambridge, diante do enorme mural com os nomes dos jovens que morreram nas trincheiras, mostra o quão marcante eram a dor e a perda humana trazidas pela beligerância fratricida. Ainda assim, o filme não faz referência à competitividade tácita que viria a ter entre as nações envolvidas no evento, conforme passou a ocorrer a partir da Guerra Fria. Como dito anteriormente, o filme enfoca o drama pessoal dos atletas, não a competição em si.

Carruagens de fogo deve ser assistido com atenção pelos detalhes. Desta forma, revela amiúde a construção de um painel histórico. Este, no entanto, viria a ser ofuscado pelos eventos subsequentes da Segunda Guerra Mundial. Em adendo, a própria Olimpíada de 1924 ficou menos evidenciada. Isto foi fruto da ausência de várias das antigas potencias europeias, a quem foram impostas as sanções do último conflito e a dissolução de impérios inteiros.

Ademais, a Olimpíada de 1936 absorve a maior parte da atenção dos historiadores e dos entusiastas do esporte, não apenas por ter sido um evento de magnitude consideravelmente maior, mas principalmente devido ao fato de ser a maior realização pública do controverso e infame III Reich de Hitler. Mais que uma obra cinematográfica, Carruagens de fogo é uma janela para um passado olímpico pouco lembrado.

 Edição      Enrique Shiguematu

Bernardo-Buarque-de-Hollanda-1024x213

Luigiside

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.