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GV CULT - Criatividade e Cultura

Galeria Miguel Rio Branco: um olhar em Inhotim

Ana Vidal

29/07/2016 07h00

Ana Clara Muniz Agostinetti

Luiza Margaritelli de Oliveira

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Galeria Miguel Rio Branco, Diálogos com Amaú, 1983

Um barco a deriva; olhos marejados; retratos flutuantes; sons turbulentos. Essas são algumas das impressões em um primeiro contato com a Galeria Miguel do Rio Branco, no Instituto Inhotim. Estes quatro elementos serão discutidos ao longo desse ensaio, por meio da articulação de seus contextos com o Brasil contemporâneo, principalmente aquele da periferia e da exclusão urbana.

O autor das obras elencadas adiante é Miguel da Silva Peranhas do Rio Branco, filho de brasileiros, e nascido na Espanha, em 1946. Dedicou sua vida ao trabalho e estudos artísticos, se envolveu com pintura, fotografia e cinema, percorreu e viveu nas Américas e na Europa. Teve seus trabalhos reconhecidos internacionalmente, como no Grande Prêmio da Primeira Trienal de Fotografia do Museu de Arte Moderna de São Paulo e no Prêmio Kodak de la Critique Photographie. Suas obras foram expostas em grandes cidades, como Paris, Veneza, Nova Iorque, Frankfurt, São Paulo e Rio de Janeiro. Hoje ainda possui obras em acervos de diversos museus. Dentre eles, estão o Centro George Pompidou, o Metropolitan Museum of New York, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Instituto Inhotim, em Minas Gerais.

O acervo de Inhotim será destacado a seguir. Antes, vale a pena elucidar um pouco da conjuntura do maior museu a céu aberto de arte contemporânea da América Latina. Localizado no município Brumadinho, em Minas Gerais, Inhotim foi construído a partir da compra de terrenos que pertenciam inicialmente a 100 famílias. O proprietário Bernardo de Mello Paz abre, em 2006, seu acervo pessoal de arte para o público. Em 2010, o Instituto passou a ser uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), o gerou impacto social, ambiental e econômico positivos, resultado do turismo. Entretanto, devido ao potencial crescimento do museu, Inhotim desenvolveu-se mais que a própria cidade de Brumadinho, o que trouxe certos conflitos na relação de pertencimento entre os habitantes da cidade e o Instituto. Assim, a primeira reflexão a ser trazida é a possível dicotomia entre a democratização da arte, com os incentivos governamentais e a geração de renda, e o insulamento da mesma, já que essa pode não estar inserida no contexto da região.

Ao adentrar na estrutura do Instituto, as galerias de artes são distribuídas com grande espaçamento entre uma e outra. No caminho, de obra em obra, o espectador anda pelo parque botânico do museu, sendo convidado a analisar sua experiência em uma galeria e preparar-se para receber novas informações da próxima. Na própria passagem entre uma arte e outra, é dado o tempo de transformação e de reflexão. Não obstante, a arquitetura grandiosa das galerias e dos pavilhões esconde-se entre as árvores. Conforme a aproximação, a curiosidade impera nos sentidos e ai já começa a experiência com a obra.

Como é citado no livro do crítico de arte norte-americano Hal Foster, O complexo arte-arquitetura (Cosac Naify, 2013), é importante destacar o papel da imagem e da arquitetura juntas: "(…) o ponto em que a arte e a arquitetura convergem é igualmente o ponto em que questões sobre novos materiais, tecnologias e mídias entram em foco; isso, também, faz com que seja urgente analisar essa conexão.".

No caso da Galeria Miguel Rio Branco, seu robusto formato de navio já impressiona quem sobe a ladeira na qual está localizada. O barco suspenso pode mostrar como a arte contemporânea ali abrigada está sempre em constante movimento, sem necessariamente ter um significado preciso e definitivo. As interpretações da arte contemporânea dependem das ondas de emoção do espectador, do contexto da época na qual é vista e diversas variáveis podem mudar o rumo da significação.

As peças de Miguel Rio Branco retratam majoritariamente a Bahia. Foi a primeira capital do Brasil. Lá os portugueses comercializavam, importavam e exportavam, constituindo a principal região de embarque e desembarque portuários. A galeria contém obras desde o começo da carreira do artista até os dias atuais, apresentando grande variedade de fotos, painéis e filmes. Dentre as imagens expostas, serão abordadas as temáticas de "Diálogos com Amaú" e a série de fotografias do Maciel (1979), que relatam a vida dos prostíbulos na parte antiga do Pelourinho, no centro histórico de Salvador.

No primeiro andar da galeria, o Pelourinho baiano da década de 1970 é retratado por meio das lentes da câmera documental de Rio Branco. O fotógrafo utiliza muito do contraste, da simetria, do espelhamento e das cores saturadas. A cada passo adentrado na escura exposição, imagens se iluminam e mostram seu brilho, suas emoções e suas histórias. O registro dos corpos femininos, marcados por cicatrizes, das casas depredadas, da violência e da solidão traz desconforto ao espectador. Este é enquadrado por entre as quatro paredes, o que reflete e pulsa a realidade de uma população carente e abandonada.

Entretanto, o maior estranhamento é a normalidade com que os personagens das cenas lidam com suas realidades. Uma das sequências fotográficas é composta por vinte retratos de dois jovens meninos jogando capoeira. É com muito contraste, mas excecionalmente com pouca saturação, que Rio Branco captura os movimentos da brincadeira. Os rostos dos garotos não se fazem visíveis e o olhar do espectador é orientado a observar a destreza das pernas e das mãos em ação, esquecendo-se do fundo branco gasto e depredado. Através de lentes localizadas abaixo do plano central, os meninos parecerem ser muito maiores do que provavelmente são: grandiosos em agilidade, tentando escapar e desviar dos golpes da vida.

Ao subir as escadas da galeria, adentra-se num ambiente envolto de sons não identificáveis. Nele está a obra "Diálogos com Amaú". Nesta, o artista apresenta uma montagem cinematográfica de uma série de fotografias de Amaú, índio surdo e mudo. Junto a um áudio que foi feito durante um ritual da tribo, o ambiente se torna ainda mais perturbador e incômodo, não só pelos sons presentes no pavimento, mas também pela história do pequeno índio. Este foi abandonado pela sua tribo em razão de sua deficiência e negado por um padre depois de ser repudiado pelos seus parentes. É nessa atmosfera que o dialogismo pode ser usado na interpretação: os discursos de diferentes segmentos sociais e de seus constantes embates – a vivência da tribo, a trajetória pelo sertão até a cidade, a recusa de acolhimento do padre e a vida nos prostíbulos.

A denúncia escancarada que Miguel de Branco faz, sobre questões que a sociedade costuma ignorar, causa desconforto naqueles que desprezam as vulnerabilidades sociais. Em contraposição, sua arte pode ser considerada como uma estetização da pobreza, principalmente quando analisada no contexto de comércio da arte. Em tal perspectiva, as desigualdades são retratadas através de uma visão externa, sem protagonismo.

Seguindo essa linha de pensamento, é possível fazer uma comparação entre a exposição e o livro "Manual Prático do Ódio", escrito por Ferréz e publicado em 2003. Sendo peça de um movimento dialético, a literatura marginal é caracterizada por sua acepção estética-cultural, que questionam as formas de produção e estilo de vida dos artistas. Caracteriza-se também por ser a arte protagonizada por quem vive na marginalidade e ilustra a periferia como parte viva e constituinte da sociedade.

Ferréz consegue, por meio de palavras claras e simples, fazer o leitor sentir a violência e a miséria vivenciadas rotineiramente pela população do Capão Redondo, em São Paulo. Um dos aspectos mais importantes do seu trabalho é o fato de ele colocar em primeiro plano a periferia paulistana, utilizando a literatura marginal não somente para retratar sua realidade, mas como ativismo político e social. Para isto, utiliza um discurso que se opõe ao senso comum e ao maniqueísmo, afirmando e inserindo a identidade da periferia no mundo literário. Em contraponto, Miguel Rio Branco não é o protagonista das histórias fotografadas, é apenas aquele que tenta impactar e lembrar a sociedade da existência dessa marginalização.

Em sua exposição no Instituto Inhotim, a obra Cachorro-Homem, de 1979, simboliza a crítica que se dá a partir da animalização dos grupos sociais marginalizados pela sociedade. Ademais, as fotografias geram uma reflexão sobre a existência de certa empatia seletiva: ambos os temas são abordados tanto por Miguel Rio Branco quanto por Ferrez, porém de modos diferentes. O primeiro ataca a questão que pode ser analisada dentro de uma perspectiva utilitarista: qual vida vale mais, a do cachorro ou a do morador de rua?

Muitos espectadores, ao se deparar com as imagens, chegam a notar somente o cachorro. Eles mostram como a comoção e a solidariedade não se dão da mesma maneira com os moradores de rua. Já Ferrez, ao reabrir o debate sobre culpados e inocentes, aborda em seu livro justamente a problemática da marginalidade das pessoas que vivem na periferia. Ignoradas pelo resto da sociedade, não demonstram a mesma consideração e empatia humana devido à sua condição social.

Por todos esses aspectos, percebe-se que as fotografias de Miguel Rio Branco denunciam vários aspectos da sociedade brasileira, assim como a literatura marginal de Ferrez. Sendo assim, é possível fazer um paralelo entre as duas obras: ambas abordam temas que representam a desigualdade e o modo como esta é tratada pela população. A realidade, escancarada aos olhos de todos, é muitas vezes ignorada e escondida. A crítica final, portanto, é que todos possam ter uma reflexão a respeito de privilégios, desigualdades sociais, falta de empatia ao olhar para o próximo. É esta a experiência de contemplação da Galeria Miguel Rio Branco.

Edição      Ana Vidal 

Ana Clara Muniz Agostinetti e Luiza Margaritelli de Oliveira são alunas de primeiro período de graduação do curso de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas (São Paulo, Turma 8, FGV-SP). Este trabalho foi realizado na disciplina "Sociedade & Representação: o Brasil através das Artes", ministrada pelo professor Bernardo Buarque em 2016.1, após visita ao Instituto Inhotim – Centro de Arte Contemporânea, na cidade de Brumadinho, Minas Gerais.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.