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GV CULT - Criatividade e Cultura

O cinema vai às Olimpíadas (I): Munique, 1972

GVcult

28/06/2016 06h00

Um dia em setembro, de Kevin Macdonald. (Alemanha, 1999, 94 minutos)

Por     Luigi Bisso e Bernado Buarque de Hollanda

Ao longo do primeiro semestre de 2016, uma parceria entre a Fundação Getúlio Vargas, por meio do Laboratório de Estudos do Esporte (LESP/CPDOC), e a Fundação Casa de Rui Barbosa, promoveu o ciclo de filmes e debates "As Olimpíadas vão ao Cinema".

A série compreendeu a exibição de alguns dos melhores filmes sobre a temática escolhida, seguida de debates com reconhecidos especialistas no tema de esporte e na área de cinema.

Sendo assim, às vésperas do início dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, vamos aqui também nessa coluna tecer comentários e compartilhar nossas impressões sobre os filmes exibidos e debatidos com o público presente.

 

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"Um dia em setembro" é um documentário eletrizante, digno do gênero suspense, tal é a capacidade de o enredo prender a atenção do espectador durante as mais de uma hora e meia de exibição. Não à toa, foi agraciado com inúmeras premiações de melhor filme de documentário. Pela Academy Awards, recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, no ano de 2000.

Guardadas as devidas proporções, se comparado à tradição de documentários contemporâneos feitos no Brasil, pode-se evocar, ao assistir às imagens daquele filme, a trama de "Ônibus 174", dirigido por José Padilha, crônica de um malfadado sequestro na cidade do Rio de Janeiro, com desfecho fatal para suas vítimas e seus algozes.

A película de Kevin Macdonald reconstitui, passo a passo, a cronologia dos eventos que se sucederam antes, durante e depois do sequestro dos atletas da delegação de Israel, nos Jogos Olímpicos de Munique. O diretor reporta em linguagem audiovisual as mais vinte e quatro horas de negociação que redundaram em um final horrendo, tanto para os palestinos quanto para a polícia local e para os desportistas sequestrados.

Através de imagens de época e de entrevistas com sobreviventes do episódio, dentre autoridades policiais, dirigentes do comitê olímpico, familiares dos inocentes e até mesmo um dos sequestradores, que fala publicamente pela primeira vez, vinte e cinco anos depois do ato de que foi mentor, o documentário mescla registros em cores da televisão alemã de início dos anos 1970 com os testemunhos posteriores de alguns dos mais importantes protagonistas.

À luz de tal enquadramento, o filme tem a capacidade extraordinária de abordar uma pluralidade de perspectivas, captando a atmosfera soturna, as hesitações e os sofrimentos humanos de parte significativa dos envolvidos. O diretor Kevin Macdonald demonstra o raro talento de compreender a tragédia sob diversos prismas, sem tomar de imediato um parti pris por um dos lados.

Sabe assim lidar de maneira sensível com a forma pela qual os familiares dos sobreviventes vivenciaram o trauma. Macdonald não deixa de criticar as vacilações do Comitê Olímpico Internacional, que não queria interromper as provas da competição. Tece igualmente duras críticas às falhas das forças de segurança alemãs. Estas se mostraram despreparadas, hesitantes e, ao final, foram responsabilizadas pela má execução do plano de resgate, que resultou na morte dos atletas israelenses.

É sabido que as Olimpíadas são um evento de elevada significação política. Por mais que o culto ao esporte, ao fair play e à superação humana seja o foco institucional e o objeto discursivo da competição, o fato de ela ser organizada por um comitê internacional designado para escolher uma cidade anfitriã torna as olimpíadas uma importante ferramenta com repercussão geopolítica internacional.

Para os integrantes do Setembro Vermelho, grupo terrorista dissidente da OLP (Organização de Libertação da Palestina), os Jogos Olímpicos ofereciam uma oportunidade ímpar para colocar a organização em evidência diante da imprensa e da opinião pública internacional. Sua ação inesperada e seu fator surpresa macularam os ideais olímpicos e fizeram história no rito quadrienal das Olimpíadas.

O que à primeira vista seria uma operação extremamente difícil de ser realizada, devido ao sistema de segurança que megaeventos desse porte possuem, a ação foi facilitada em parte pela postura mais branda adotada pela segurança alemã. Ainda estigmatizada pelos crimes do III Reich, a República Federativa da Alemanha tentou ao máximo desassociar as olimpíadas de 1972 com o clima de militarização presente nas Olimpíadas de 1936.

Durante a execução dos jogos, as normas de seguridade e vigilância da Vila Olímpica foram abrandadas, de modo que os atletas conseguiam cruzar entre os aposentos sem sequer serem revistados. A isto se somava o fato de que havia pouco controle sobre quem entrava e quem saía da área residencial que hospedava os atletas de todo o mundo.

 Na noite de 4 de setembro, oito homens armados e encapuzados pularam as cercas da vila olímpica e, sob a escuridão da madrugada, conseguiram invadir os aposentos da equipe de Israel. Nas primeiras horas do ocorrido, um dos atletas conseguiu escapar dos terroristas, mas um dos treinadores israelenses foi imediatamente executado.

Durante a manhã do dia seguinte, o objetivo principal dos terroristas foi alcançado, quando as redes de notícia passaram a alardear e a cobrir o sequestro. Mesmo com a situação se tornando cada vez mais intricada e imprevisível, o COI e o governo da Alemanha ocidental determinaram que os jogos continuariam, independente da crise que se agravava a cada hora e mesmo, à medida que o tempo passava, a cada minuto.

O documentário mostra o clima perverso criado, ainda que à revelia, pelos gestores sobre os atletas. Mesmo abalados com as informações, os desportistas eram obrigados a dar continuidade às competições, mesmo que sob o risco e a ameaça de vida de seus colegas. O desfecho, potencializado pela inépcia da polícia local, ganha colorações trágicas, à medida que a reconstituição fílmica permite inferir que os membros da delegação israelense acabam assassinados, em parte pelas ações desastrosas do plano alemão de resgate.

A polícia alemã falhou ao subestimar o número de terroristas e colocou seus operadores em posição tática de alto risco. Durante o tiroteio com os terroristas no aeroporto, para onde se dirigem os terroristas em fuga, não só os policiais alemães estavam mal equipados como os tanques blindados, que deveriam dar suporte ao salvamento das vítimas, não chegaram a tempo. Percebendo que se encontravam encurralados, e à beira do aniquilamento, os terroristas lançam granadas dentro de um dos helicópteros e perpetram tiros de fuzil. A atitude suicida levou à destruição dos dois veículos que transportavam os membros da equipe israelense.

O argumento sustentado pela versão do diretor Kevin Macdonald deixa subentendido que o governo alemão tentou acobertar os detalhes da tragédia à opinião pública. Acabou por não assumir os seus erros, ao libertar três sequestradores sobreviventes, após um avião da Lufthansa, com tripulação mínima, ter sido sequestrado. Como mostra este filme comovente, a memória coletiva e o legado daqueles Jogos Olímpicos de 1972 não foram suas conquistas, nem seus recordes, tampouco as superações dos competidores, mas a morte de onze atletas israelenses e de um policial alemão.

Às vésperas das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro, o terrorismo de episódios como o de Munique pode vir a assombrar aquele que se dispuser a assistir hoje ao filme. Com os recentes ataques em Paris, Orlando e Bruxelas, o risco se torna ainda mais preocupante. Espera-se que este precioso filme, verdadeiro documento histórico, contribua para que a lição seja aprendida. Mais do que leis antiterroristas, que apenas transplantam a lógica do medo para o Brasil, é mister investir em preparo policial, em inteligência investigativa e em políticas públicas de prevenção à violência e de inclusão social por meio do esporte.

 Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.