O conceito de poder no Antigo Regime francês (II)
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Em uma visada marxista, todas as formas de absolutismo europeu serviram de interesse à classe de nobres ou dos proprietários fundiários. O absolutismo é então a superestrutura política de um regime econômico-social, de um regime de repartição dos bens pela nobreza, pela burocracia e pela burguesia, obtidas a partir do trabalho camponês e do poder coercitivo do Exército e da Justiça, destinados a manter e a proteger as relações sociais de produção. A ideologia tem por papel objetivo mascarar a essência do regime econômico e social absolutista.
Em contrapartida, o historiador francês Roland Mousnier (1907-1993), autor de "Instituições da França sob a monarquia absoluta", parte da opinião de contemporâneos, em especial do jurista Charles Loyseau (1564-1627), para afirmar a existência de uma sociedade de ordens e estados e recusar a identificação automática entre nobres e proprietários fundiários. Ele considera que o conceito de absolutismo funda-se na França dos séculos XVII e XVIII, compondo toda uma cosmologia, uma teologia e uma mitologia forjada pouco a pouco, perto do fim do Antigo Regime.
Robert Mandrou (1977), por sua parte, insiste sobre o fato de que a realeza jogou com a dicotomia dos grupos dirigentes, retirando progressivamente o essencial da administração e da justiça em proveito da burguesia e em detrimento da nobreza. Fora este problema de natureza social, alguns fatores favoreceram a instauração de uma monarquia absoluta: a tendência à constituição de grandes Estados; a necessidade de afirmar a autoridade do poder central; o confronto entre jovens Estados que necessitavam de uma Armada permanente, uma fiscalização melhor adaptada e uma administração regulada em conjunto; a necessidade de independência e de poder econômico, cristalizada nas doutrinas do mercantilismo; o desenvolvimento de uma certa tomada de consciência nacional; a importância do fator religioso e de sua evolução. Resta ainda que o próprio da monarquia absoluta na França é ser "limitado", em contraste com o despotismo de países do Leste Europeu e do Oriente Próximo.
Para o historiador das ideias políticas e do direito, Aurélie Du Crest, em premiado trabalho (2002), família e Estado constituem dois pilares institucionais que, ao longo da História ocidental, foram vistos ora em interdependência ora em oposição. No curso dos séculos XVI e XVII, argumenta o autor em sua tese, a família aparece como pedra angular do absolutismo monárquico, por meio de uma representação marital e paternal do rei. A família se afigura então uma decisiva metáfora definidora do Estado. Este é percebido como uma reunião de famílias, mais do que uma associação de indivíduos.
Assim, os laços familiares acabam por servir de modelo a uma teoria absolutista do Estado, com enunciados teóricos que justificam a indivisibilidade da soberania. No Ancien Régime, as representações familiares da realeza aparecem associadas ainda, na esfera iconográfica, a figuras divinas (Apolo), heroicas (Hércules), guerreiras ou imperiais (Augusto).
Ao longo dos séculos XVI e XVII, o monarca vale-se dessa dupla imagem: a de marido e a de pai. O soberano reunia em uma única pessoa estas duas condições, conforme sentencia o jurisconsulto Jean Bedé de La Gormandière: "O Rei sozinho é marido e pai de seu povo". Fundadas sobre duas visões simbólicas da realeza, ambas as imagens familiares podem ser consideradas como ficções político-jurídicas. Dito de outra maneira, elas são construções da imaginação que tiveram consequências ao mesmo tempo na área legal e política, com as respectivas ideias de aliança, dominação e hereditariedade.
Nessa ótica, a metáfora marital conduz os pensadores franceses a interrogar-se sobre a natureza da ligação que une o rei ao "reinado" e à "Coroa", assim como a especificar certas questões relativas ao direito público da monarquia. Desta forma, a metáfora paternal leva a hierarquizar as relações entre o rei e o povo e a inserir a realeza no direito privado das famílias particulares.
Um hábito constante do pensamento político dos séculos XVI e XVII foi a busca por justificativas para a autoridade monárquica, a fim de legitimá-la. Ora, a família figura no primeiro plano desse arsenal de legitimação no qual se assenta a dominação do rei e a subordinação dos homens. Não se trata mais de partir de cima, definindo o rei como um pai e o reinado como uma família, mas de ligar-se à base, apresentando a instituição doméstica como uma pequena monarquia absoluta, com o objetivo de projetar as suas características essenciais no plano político.
Arquétipo do poder real, o poder paternal alimentou dois grandes debates: o primeiro, provocado pela renovação do pensamento antigo, diz respeito à melhor forma de governo, inspirada tanto no modelo da Grécia clássica (monarquia, aristocracia ou democracia) quanto nos tipos de regime romano (realeza, república ou principado). A natureza paternal da monarquia absoluta constituiu um dos argumentos principais em favor de sua superioridade sobre os demais regimes.
O segundo debate toca na questão da origem monárquica. Certos teóricos políticos da época, como o humanista Jean Bodin (1530-1596) e Jacques-Bénigne Bousset (1627-1704), entre outros, tentaram reconstituir a gênese da realeza a partir das famílias primitivas. Ao referir-se tanto a um passado vago e hipotético, quanto a uma interpretação simplificada da História, a explicação da formação da monarquia através do modelo institucional familiar foi um outro modo de fundar a obediência incondicional dos homens.
Se a justificação familiar da soberania real, elaborada no século XVI, estende-se e persiste no decorrer do século XVIII, a partir daí ela não vai se apoiar mais exclusivamente na doutrina absolutista. Com efeito, o modelo doméstico modifica pouco a pouco o ideal do poder temporal. Ao contrário dos seus predecessores, que faziam repousar a família e a realeza sobre o mesmo fundamento, divino ou contratual, os pensadores do Esclarecimento distinguem a autoridade paternal da autoridade monárquica, instrumentalizando a primeira a fim de limitar a segunda. Esta evolução contrasta com a decadência da ideologia absolutista que não conseguia mais se renovar no Setecentos.
Assim, as relações tradicionais tecidas entre a família e a monarquia absoluta assistem a uma inflexão na segunda metade do século XVIII. O poder paternal e seu caráter sagrado são então desacreditados. Sempre sustentada pelo poder político, a organização autoritária da família enfrenta a "revolução sentimental" que concede à infância um lugar cada vez maior dentro da célula doméstica burguesa, como demonstrou Philippe Ariès em trabalho clássico sobre a história da vida privada na Europa moderna (1973). Em razão deste aspecto tirânico do pai sobre o filho, os pensadores das Luzes denunciaram o caráter absoluto do poder detido pelos adultos.
Ao mesmo tempo, o caráter paternal da realeza cessa de ter unanimidade. Se ele permitia até então justificar o poder absoluto, a seguir ele não constitui mais, para certos teóricos, um instrumento de legitimação e de definição do governo monárquico. A imagem paternal do rei será suplantada progressivamente pela figura maternal da pátria, da nação e da república, em que a fraternidade parece sobrepujar a paternidade, cujo fim é simbolizado no regicídio em 1793, tal como sentenciava Balzac: "Cortando a cabeça de Luís XVI, a Revolução cortava a cabeça de todos os pais de família".
Em consonância com a discussão em torno da figura simbólica do rei, é possível acionar a obra de estreia de Norbert Elias, A sociedade de Corte (1974). O sociólogo alemão explora a dimensão doméstica da vida no Palácio de Versalhes e entende a Corte francesa, nos moldes inaugurados por Luís XIV, como um microcosmo. Nele, o Rei e sua entourage encenam regras de etiqueta (cf. Ribeiro), que por sua vez evidenciam os traços de uma nova sensibilidade do indivíduo moderno, o gentilhomme, emblematizada na figura do cortesão de Castiglione, ao mesmo em que apontam para o progressivo monopólio da força física pelo Estado absoluto, composto não mais por cavaleiros leais, cuja honra é um valor pessoal inestimável, mas por exércitos públicos cada vez mais profissionalizados, através da chamada curialização dos guerreiros.
Assim, para Elias, a vida na sociedade de corte é a chave-decifradora do etos institucional do Antigo Regime. A Corte francesa por sinal não para de crescer entre os séculos XVI e XVIII, tornando-se uma instituição política tão importante a ponto de, em 1744, Versalhes abrigar cerca de dez mil pensionistas.
Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana
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