O barco está à deriva?
Por Luís Alberto Machado.
Em março último, o cantor Paulo Ricardo, que se consagrou como vocalista da banda RPM, gravou um DVD em homenagem ao centenário do nascimento de Vinícius de Morais. Como meu filho era o percussionista da banda que participou da gravação, fui convidado para ir com minha esposa assistir à sessão aberta ao público. Toquinho, que foi um dos mais assíduos parceiros de Vinícius, participou como convidado e, com sua competência e simpatia, foi brilhante.
Poucos dias depois, ele convidou meu filho para participar de um show que ele iria fazer no Central Park, em Nova York, no mês de junho. O Guga, nome do meu filho, quase morreu de alegria com o convite, aceitando-o imediatamente. A partir daí, ficou aguardando ser chamado para os ensaios, uma vez que só havia tocado com Toquinho na gravação do DVD e jamais havia tocado com a banda que normalmente o acompanha. O tempo foi passando, a data da viagem se aproximando e… nada de ensaio.
Nessa situação, era visível a preocupação dele no dia do embarque. Aliás, foi só nesse momento que ele conheceu o restante da banda. Como em Nova York também não houve ensaio – a não ser a rápida passagem de som momentos antes do show – ele revelou sua preocupação numa conversa com Silvia Goes, mais conhecida como Silvinha, que há anos acompanha Toquinho e que é, sem favor algum, uma das maiores pianistas populares de todo o mundo. Percebendo a preocupação do Guga, a pianista falou:
– Fique tranquilo. Vai dar tudo certo. Se o Toquinho te convidou tocando com você uma única vez é porque ele percebeu que você tem talento. A única dica que eu vou te dar é pra não entrar antes da banda. Nem que ele olhe pra você. Finja que não percebeu. Espere a banda entrar e, aí sim, manda ver.
Como pais que procuram acompanhar a carreira do filho sempre que possível, minha esposa e eu, estivemos em Nova York e fomos testemunhas vivas do excelente show num fim de tarde nova-iorquino maravilhoso, com as dependências destinadas ao evento superlotadas, em grande parte por brasileiros lá residentes.
De volta ao Brasil, ao gravar um programa para a TV Folha com Samy Dana, economista formado pela FAAP e hoje vinculado à FGV, além de comentarista da Globo, fiquei sabendo que ele desenvolvia um trabalho em parceria com a Silvinha, que é estudiosa da relação entre a música e a neurociência.
Como o Samy e eu ministramos cursos de criatividade e, para tanto, também precisamos conhecer alguma coisa de neurociência, resolvemos nos reunir para ver se rolava alguma coisa. E não deu outra. No início de agosto, a convite do departamento de RH da Rio Bravo Investimentos, uma das mais conhecidas gestoras de recursos de São Paulo, que tem o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, como um de seus sócios, fomos – Silvinha, Guga, Samy e eu – fazer uma palestra sobre música e criatividade.
Mais uma vez, embora tenhamos feito várias tentativas de nos reunir para preparar a palestra, acabamos indo para a Rio Bravo com apenas um encontro realizado, durante o qual, diga-se de passagem, comemos e conversamos muito, sobre… amenidades. Ou seja, de preparação mesmo que é bom, muito pouco.
Resultado: no dia da palestra, o Guga estava novamente muito preocupado. Dizia: a Silvinha tem muita experiência, e você e o Samy vivem dando palestras. Mas e eu, como vou fazer?
Quando manifestei essa preocupação do Guga, a Silvinha voltou a dizer para ele não se preocupar, recomendando apenas que ele esperasse ela entrar para depois fazer a parte dele.
Na hora da palestra, fiz uma rápida introdução sobre o tema da Criatividade, seguida de uma intervenção do Samy falando da relação entre música e criatividade e passou a bola para a Silvinha. Com a segurança dos que sabem muito, Silvinha contou aos presentes como havia surgido a ideia daquela apresentação em conjunto e destacou o papel do improviso, que pode ser fundamental na música, na criatividade ou em qualquer outro campo de atividade.
Nesse momento, ela explicou que são famosos os encontros de músicos de jazz que se reúnem para sessões improvisadas conhecidas como jam sessions. Alíás, há um excelente livro de criatividade em que o autor se baseou nisso e que eu havia emprestado à Silvinha logo depois de nosso único "encontro preparatório".
Muitos se perguntam como é possível sair coisa boa se as pessoas se encontram apenas para tocar, sem qualquer ensaio ou encontro prévio. De acordo com a explicação dela, o que existe nessas sessões é um tema que serve para dar o tom, servindo de balizamento para todos os participantes da sessão. A partir desse tema, qualquer dos participantes pode entrar na música e fazer sua improvisação, voltando depois ao tema básico.
Em outras palavras, o tema serve como balizador, uma espécie de corrimão, que orienta e dá segurança a quem dele precisa.
Ao introduzir o tema da criatividade, o Samy, que conhece bem a minha abordagem, não teve dificuldade para dar continuidade, fazendo a ponte entre a criatividade, a música e, de quebra, a economia. A Silvinha, por sua vez, que também já conhecia bem o enfoque do Samy, soube dar continuidade sem problema à parte explanatória. E quando passou da teoria à prática, tocando maravilhosamente como é de costume, o Guga, com sua enorme competência, soube exatamente quando e como entrar com a percussão, fazendo um som que agradou em cheio a todos os presentes.
A lição que tiramos – nós quatro – dessa experiência é que dá pra transformá-la num produto que pode ter enorme demanda no mercado de palestras corporativas. Para tanto, será necessário mais ensaio, o que não significa que não haverá espaço para improvisação. Esta, porém, deverá se aproveitar de um balizamento mais aprimorado. Entretanto, como a base – o tema – já existe, as perspectivas são muito boas.
Infelizmente, não é isso que dá pra sentir a respeito da economia brasileira nesta fase de transição de mandato presidencial. A combinação de enormes indefinições, maus resultados (crescimento pífio, inflação no topo da meta, déficit comercial), ações descabidas (contabilidade criativa, abandono da meta da política fiscal) e declarações estapafúrdias (justificando o injustificável), tudo isso regado a ampla dose de corrupção, dá a todos a sensação de que o barco está à deriva, sem balizamento e, talvez pior, sem condutor.
Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.
Luiz Alberto de Souza Aranha Machado é economista, mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal). Vice-diretor da Faculdade de Economia da FAAP. Sócio-diretor da empresa SAM – Souza Aranha Machado Consultoria e Produções Artísticas.
Referência:
KAO, John. Jamming: a arte e a disciplina da criatividade na empresa. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
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