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GV CULT - Criatividade e Cultura

Festa surpresa

GVcult

16/09/2014 20h00

Por André Dib.

Seria daquela maneira e não de outra. Era como se estivesse escrito há muito tempo. Escrito nas estrelas. Era só ter olhado para cima em uma noite limpa de verão que poderia ler o futuro.

Às vezes tinha a impressão de que qualquer um podia ser vidente. Bastava ser capaz de conectar os fatos e calcular meticulosamente as causas e consequências. Mas mesmo assim, a vida surpreendia.

O elevador parou, como estava parada sua vida nos últimos tempos. Lembrou-se dos homens consertando os fios na rua e tudo fez sentido. Agora lhe restava um bocado de tempo, uma xícara de escuro, três colheres de calor e uma pitada de fé. Devia ter escolhido o caminho culinário. Desde criança via a avó cozinhar, sempre estava por perto, sempre ajudava, sempre aprendia.

Mas optou por uma receita de mais sucesso. Optou por uma travessa grande de faculdade, quinze minutos batendo DP no liquidificador, uma hora e meia no forno do mestrado e dezesseis horas por dia de trabalho salgado. Enquanto isso, o curso de gastronomia ficava em descanso por alguns anos.

O elevador deslizou. Uma xícara de escuro, oito colheres de calor e um balde de fé. Era impressionante como se tem fé na vida quando os limites ficam mais próximos. Mas foi só um susto. Como nos filmes.

Os gritos e os incessantes esmagamentos do botão de socorro se mostraram inúteis. Era como se estivesse mergulhado em solidão no meio do oceano, sob um bilhão de xícaras de profundidade. Não conseguia escutar nem um piu. Ficou em silêncio total e grudou o ouvido na porta metálica do cubículo escuro. Nada.

Chegou à conclusão de que como não quisera cozinhar para a vida, a vida lhe cozinhava. Era a segunda vez na semana que se via preso no elevador. E era quarta feira. Segunda foi feriado.

Um ataque histérico fez com que as paredes fossem socadas como uma massa de pizza. Desistência. No chão sentou e suou. Com as mãos no rosto, pensou que estava tão calor que poderia fazer um bolinho de chuva no suor que escorria pelo seu corpo. Agora sim se sentia embalsamado em um mar quente e distante.

Pensou em dormir, mas não lhe pareceu razoável. Era óbvio que não conseguiria. Mas que horas eram que ninguém podia ajudar?

A mesma hora que escolheu o curso que faria, provavelmente. Ninguém estava lá para ajudar também. Escolheu meio no Uni Duni Te. Meio na vontade de agradar o papai e a mamãe. Imagine uma carreira gastronômica na família: Que vergonha!

Mais vergonha era a prisão no elevador duas vezes por semana. Parecia brincadeira. Por um momento imaginou seus amados colegas do escritório dando risada na sala de segurança. Mas logo essa imagem foi embora, e tentou pensar no futuro. Ler a história que já estava escrita.

Na primeira linha dizia: em restaurante não tem elevador. Deu uma risada curta e grossa.

Na segunda linha dizia: já passava do horário da reunião de apresentação de resultados, na qual quem faltava tinha sua vaga preenchida por alguém mais novo e mais barato.

Por alguns instantes calculou mentalmente quanto tinha na poupança e nas aplicações e quanto custaria para abrir um restaurante pequeno em um bairro não tão nobre.

Na terceira linha dizia: você, que tem a chance de chegar ao trabalho e ter sua carta de demissão em cima da mesa, fique quietinho e aproveite o tempo preso no elevador para ler as estrelas. Quem sabe a vida não lhe pregou uma peça para lhe fazer uma festa surpresa?

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

AndreDib

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.