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GV CULT - Criatividade e Cultura

Sensibilidade absurda*

GVcult

17/04/2014 09h00

Por Vítor Steinberg.

"O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara


O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela


A Baía de Guanabara


O antropólogo Claude Levy-strauss detestou a Baía de Guanabara:


Pareceu-lhe uma boca banguela.


E eu menos a conhecera mais a amara?


Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela


O que é uma coisa bela?"

Caetano Veloso, "O Estrangeiro"

Uma possível raíz da palavra "estrangeiro" encontra-se no inglês "stranger" ("estranho") e no grego xenós, "externo", "desconhecido", ou "bárbaro". Em português, o termo correspondente à grafia grega é xenofobia, o medo da invasão de um estranho em seu lugar conhecido, sua casa, seu habitat, círculo já habitual e constantemente reconhecido. Assim seria um caminho para adaptar um meio de sobrevivência. Quando na diáspora os nômades indo-europeus descobriam um lugar para morar, estabelecer solidez e presença fixa, não havia mais o medo de buscar uma casa, um teto. Não havia mais o temor de ficar sem abrigo, com frio, fome, exposto a chuva, doença e sede. Era possível parar e ficar. Há segurança para aguardar a gestação da mulher, produzir suprimento e também cuidar da família. Havendo um ambiente seguro que protege até a morte, há a possibilidade de tempo útil para cultivar o que se come. Há a possibilidade de pensar, longe dos perigos da migração. O cultivo das plantações e o tempo para pensar em um lugar estável – princípio fundamental da cultura (e também da palavra "cultura") – são os meios de lidar com a continuidade em seu ambiente oportuno, meios de cuidar para que tudo sempre permaneça fixo, em ordem. O trabalho aperfeiçoado por uma série de experiências no mesmo local. Mas se alguém de fora chega, algo de novo chega com ele. Um sistema novo de cuidar das coisas ou destruí-las.

Na Grécia clássica, a chegada de povos diferentes era comum, pois as populações do mundo estavam em permanente deslocamento. Com um povo nômade, podia vir junto até um deus novo. Por conseguinte, os gregos construíram, entre todos os templos caseiros e por conveniência, um templo ao deus desconhecido. Assim foi na chegada ruidosa de um deus asiático (mesmo sem saber exatamente se foi da Ásia que ele partiu), enlouquecendo as mulheres que teciam e cuidavam dos filhos e maridos em suas casas e as levando a topos de montanhas para sacrificar animais com as mãos. Era Dioniso, deus da terra, do vinho, da embriaguez. A desordem que ele causava na sociedade comportada fazia escândalo público, completo choque cultural. Toda a doutrina, toda a educação herdada de tradições lapidadas era posta em xeque quando um deus anárquico entrava para confundir. Ruptura de costumes, o incômodo de desacostumar-se, aprender uma nova forma de viver. A descoberta de um novo universo.

Conhecer um universo novo, além da expectativa cultural, está na raiz da palavra "experiência": "ex" –fora– e "perímetro" –circunscrição, fronteira que encerra seu conhecimento. "Experimento", "experimentar" está na mesma linha original. Tentar algo novo.  Transcender o alambrado de suas tradições e costumes, conhecer uma terra nova, estranha, uma temperatura diferente, novas cores, sons, sensações, elementos. O escritor francês Marcel Proust na epifania da Madeleine, como se enxergasse o mundo pela primeira vez. Vivência de estrangeirismo.

Quando se lê "estrangeiro", nem sempre significa a pessoa que veio de outro país. Há outros significados. Pode ser alguém que se vê estranho em sua própria casa, sua própria cidade, seu próprio país ou até mesmo seu próprio planeta, pois se vê muito de longe. Vidência estrangeira apresenta o estranhamento de sua própria vida. Uma profunda sensação de estranhamento do mundo, assombrada pelas questões mais fundamentais do homem: "onde estou?", "quem sou eu?". Quando a consciência atinge um mergulho fundo de seu significado no mundo, não existe mais uma casa, mas um corpo errante no espaço vazio, uma perda integral do sentido. O estrangeiro é aquele que não sabe o sentido, pois nunca passou por aquele caminho. O estrangeiro, por não saber onde ir, está livre. Mas a liberdade é um corpo atirado no espaço sideral, não há chão, não há objetivo para ser alcançado. O estrangeiro é o homem que se vê de fora e, portanto, carrega uma estranha liberdade: a escravidão do desejo de ser livre. Aos olhos de todos os cidadãos da cidade é um estranho e, em conseqüência, estranha a si mesmo: não há nitidez quanto a sua direção, sua identidade, atravessando a falta de reconhecimento.

A letra da música do início desta introdução, "O Estrangeiro" (1989), de Caetano Veloso, propõe um exercício semelhante de reflexão poética na transformação do familiar em exótico e do exótico em familiar, sobre o significado do ser estrangeiro na pós-modernidade. O texto remete a um imaginário capaz de revelar como os homens refletem sobre a sua própria condição, bem como a um exercício de estranhamento quanto à significação dessas mesmas experiências sociais. O compositor inspirou-se no escritor franco-argelino Albert Camus (1913 – 1960), autor ao qual esta monografia é dedicada.

Albert Camus morreu há 50 anos e, portanto, houve imediata aspiração para homenageá-lo e realizar uma pesquisa sobre ele. Homem multifacetado, foi intelectual, dramaturgo, militante político e jornalista. Apaixonado por futebol, morreu fatalmente numa batida de automóvel contra um poste. Conhecido como o "filósofo do absurdo", opõe o desejo de clareza do homem a opacidade do mundo. Mas não se considera filósofo, abomina qualquer corrente ideológica através de "sistemas". O que se trata, fundamentalmente, é a condição absurda do homem, aqui analisada. Em duas obras cujo tema foi inaugurado, "O Estrangeiro" e "O Mito de Sísifo", ambas publicadas em Paris –em 1942– esta monografia confronta de forma sintética: apresentando um panorama do primeiro ciclo do autor –entre três–, o do absurdo.

Em cada ciclo, sempre uma espécie de eterno retorno, cada livro remete aos anteriores, e o escritor escreveu quase tudo simultaneamente. Não há exato fechamento, "as cordas se desatam e novamente começa o jogo difícil da procura[1]. Desta forma, Camus sempre deixou de dizer alguma coisa. O seu mundo não era e nem poderia ser esgotado porque sobretudo pretendia ser verdadeiro.  Ao realizar este exame, haverá um percurso interdisciplinar de descrição e símile entre determinadas passagens da filosofia e da arte. Fusão composta pelo autor no decorrer de sua obra. A questão humana é a linha de força que trança o ciclo observado, tema este que representa a encruzilhada com a qual a literatura se deparou na segunda metade do Século XX, compreendendo a natureza da personagem numa obra fictícia e o existencialismo em moda na época.

Nesta composição, procurar-se-á perceber o percurso filosófico e artístico que vincula as duas obras. Para tanto, terá como fundamento os dois livros de Camus, as notas das aulas e palestras da professora e orientadora desta monografia, Thaís Rodegheri Manzano, e uma seqüência de livros contemporâneos que tratam da condição humana a partir do pensamento de Camus.

Em "O Estrangeiro" presenciamos um assassinato sem motivo.  Em "O Mito de Sísifo", um homem é condenado a levar uma pedra muito maior do que si mesmo até o topo de uma montanha, para vê-la rolar até o chão, e assim levá-la de novo, eternamente. Situações irmãs, as que de imediato nos põem diante da grande indagação da Esfinge: "Decifra-me ou devoro-te", ou da inscrição do portal do Oráculo de Delfos: "Nada em excesso. Conhece-te a ti mesmo".  Pois sem um deus onipresente e onipotente que define nossos valores, o universo é hostil e indiferente, não vê qualidade maior entre um "desenho mal feito de boca" ou a morte de uma pessoa. Aprender nossa condição sem rumo e absurda é o grande ensinamento de Camus. "A característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas. Ele percorre, armazena e queima os rostos calorosos ou maravilhados. O tempo caminha com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo" (CAMUS 2008:36).


 1  PINTO, Manuel da Costa. Altiva Austeridade. Revista CULT, Fevereiro de 2010. No. 143

 

*O presente texto faz referências à monografia do autor, intitulada "Sensibilidade Absurda – "O Estrangeiro" em Albert Camus".

 

 

Edição: Samy Dana e Octavio Augusto de Barros.

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.