AO REDOR, RUÍNAS
GvCult - Uol
10/11/2022 07h14
Por Tatiana Caldeira de Oliveira Barros
Disciplina: Arte e Sociedade
Professor: Bernardo de Holanda
De lugar de esquecimento à lugar de existência transitória, ao ocupar novamente a casa desloca-se signos ali presentes, que são os signos de uma habitação, da arquitetura, das estruturas prestes a ruir, enfim são também signos de uma sociedade abalada e em constante ruína.
Glayson Arcanjo
Neste ensaio pretendo discutir o filme "O Som ao Redor", do cineasta Kleber Mendonça Filho, considerando especialmente a análise do filme realizada na tese "O Som ao Redor: leituras, memória e ruína", de Laura Josani Andrade Correa (UFSC, 2017), bem como relacionando-o ao campo das artes visuais, a partir de algumas imagens do filme e de outras sugeridas por Correa em sua análise e, ainda, considerando o trabalho do artista plástico Glayson Arcanjo e de outros artistas.
Ao assistir ao filme pela primeira vez, o primeiro aspecto que me chamou a atenção foi a questão do ritmo. Habituados que estamos a ritmos velozes ou até frenéticos, o passar do tempo no filme nos causa inicialmente um desconforto, somado à apatia dos personagens, às ações contidas e às falas poucas e quase sem entonação. A ausência (inicial) de uma narrativa linear, de protagonismos e de momentos de 'quebra' (revelações, reviravoltas na trama…) também nos causam desconforto e estranhamento à princípio, pois as cenas parecem uma introdução sem fim. Contudo, aos poucos, vamos nos inteirando das relações existentes entre os vários grupos representados – a família de Francisco, a família de Bia, os seguranças, os demais trabalhadores subordinados e envolvidos com estes personagens.
Uma vez compreendida a proposta e especialmente em uma segunda audiência do filme, uma série de recursos aparecem com grande força expressiva: os sons que dão título ao filme e as imagens simbólicas, amplamente utilizadas. A expectativa da narrativa convencional e da ação 'dinâmica' desaparecem e percebemos a riqueza visual da construção cinematográfica.
Na correria de nosso dia a dia vivemos falando que quando tivermos mais tempo, realizaremos tais e tais ações, ações estas relacionadas ao prazer – à vida propriamente. No filme os personagens, à princípio, dispõe deste tempo, mas também não estão felizes… Seria o incômodo proveniente de algum grau de identificação? A busca por uma felicidade que não está na rotina que se arrasta e nem no tempo se esvai na correria do cotidiano.
Voltando à narrativa fílmica, a ação se completa na cena da vingança, quando todos os grupos principais são articulados e estabelece-se um sentido norteador da história. Os seguranças vingarão a morte de seus pais, o 'senhor do engenho' será morto, enquanto simultaneamente aos tiros a família de Bia solta fogos no terraço. Na primeira vez em que vi o filme, um pouco desatenta, havia guardado esta cena final como uma celebração de ano novo; na segunda vez percebi que na verdade os fogos relacionam-se ao cachorro (são para assustá-lo, fazê-lo calar), mas a postura final da família de Bia nesta última tomada é bem interessante. Embora na trama as cenas não se relacionem, pois um grupo não tem contato e nem ciência do outro, podemos aqui estabelecer algumas relações. O marido está celebrando, feliz – é como se estivesse comemorando (com seu personagem representando seu grupo social) a vingança concretizada. Bia e a filha olham com a expressão de fascínio para os fogos, que iluminam este conjunto (pai, mãe e filha); a meu ver, remetem a questão da violência, tão presente no filme através das grades – seria um misto de medo e fascínio – observando que o som que ouvimos neste momento é o dos tiros – logo, estariam fascinadas também pelo desfecho da outra cena. E por fim, o filho que está em primeiro plano, vira-se na direção do espectador e cobre com força os ouvidos, enquanto curva seu corpo para frente e abaixa a cabeça, ou seja, ele não vê e não quer ouvir a cena que acontece. Apenas é atingido pelo mesmo clarão. A cena deste menino parece-me próxima da cena da cachoeira de sangue; embora não sejam da mesma classe social e tenham passados diferentes, estes dois personagens – o menino e João – nestas cenas parecem negar uma realidade que se apresenta. João, na cena da cachoeira, inicialmente dá um grito, algo tribal, como um expurgo, no que é seguido por seu avô; quando a cachoeira torna-se vermelha, ele tem o olhar fixo no espectador, também remetendo para fora daquela realidade, como se não quisesse estar ali; apesar da rapidez da cena, seu corpo é inerte e seu olhar, vazio.
Analisando as críticas do filme, Almeida e Pelegrini (2016) destacam três aspectos comuns presentes em todas os textos críticos analisados: o aspecto sociológico do filme, a mistura de gêneros e o caráter inovador da obra.
A análise sociológica também norteia a tese de Correa, que a realiza a partir de textos literários e imagens relacionados aos ciclos do açúcar, às relações dos senhores de engenho com a sociedade da época, às relações fruto dos anos de escravização dos povos negros e às heranças de todo este quadro para a sociedade atual. Embora a autora, assim como o cineasta, estejam se referindo a um contexto específico, de Pernambuco, as questões por eles levantadas permeiam a sociedade brasileira como um todo.
Sobre a mistura de gêneros, extraímos este trecho:
A estética da mistura de gêneros
Do ponto de vista estético, a crítica ressalta o recurso ao cinema de gênero para classificar os procedimentos sonoros que, de tão importantes, nomeiam o filme. O som é praticamente um personagem, tratado de maneira pouco usual ou menos naturalista ou realista que as cenas cotidianas. Os sons do extracampo são intencionalmente trabalhados para a construção da sensação de medo e aparecem amplificados.
Maria do Rosário Caetano (Brasil de Fato) sintetiza bem essa importância do som no filme: "Sonoridades urbanas que potencializam de forma arrebatadora este denso painel de estórias de pessoas apavoradas-atormentadas por medo potencial". Trata-se do recurso ao horror metafísico, que, como ressalta a crítica, não "tem nada a ver com filmes de terror explícito, alimentados por sustos brutais e jorros espetaculares de sangue" (Caetano, M. do R., 2013, p16).
Heitor Augusto (Revista Interlúdio) é bastante didático sobre esse aspecto: "Percebe-se uma clara predileção ao cinema de gênero, em especial o horror, com uma montagem que privilegia o todo, em detrimento do um, construindo um clima de tensão no espectador que reflete a cultura do medo" (Augusto, 2013, p10).
Consuelo Lins (O Globo) explica essa mistura de gêneros recorrendo a Hitchcock:
O surpreendente é que o filme alie tal realismo a procedimentos clássicos do suspense no cinema, mantendo o espectador sob tensão do começo ao fim. Muitas situações são construídas como se algo de terrível fosse acontecer, sem que a ameaça se realize, na maior parte das vezes — e quase não nos damos conta porque somos sucessivamente capturados por novos riscos. É a estratégia do suspense do cinema de Hitchcock aplicada à realidade brasileira, à descrição social em forma de crítica (Lins, 2013, p12).
O último aspecto comentado por Almeida e Pelegrini, a partir da análise dos textos críticos, é o elemento inovador da linguagem cinematográfica, especialmente pelo protagonismo que o elemento sonoro desempenhará na trama, sendo como um personagem. Destacamos este pequeno trecho:
A novidade estaria em "abandonar a tradição didática catequizante que historicamente ronda a produção brasileira e devotar-se ao cinema de gênero como manancial de possibilidades para falar sobre o presente, quebrar expectativas" (Augusto, 2013, p13).
Faltou-nos a crítica de Eduardo Escorel na revista Piauí, a qual parece ser a única destoante das analisadas pelos autores supra citados, mas a qual infelizmente não consegui localizar para a análise neste trabalho.
Ao apresentar a família de Francisco – ele próprio, um senhor de engenho transposto para a cidade, seu neto João, o outro neto que furta objetos na rua e as tradições familiares, Mendonça Filho vai nos apresentado as heranças de um passado escravocrata. Os personagens 'herdam' modos de lidar e querem, especialmente no caso de Francisco, reestabelecer as antigas relações de domínio, agora na cidade.
Quando o casal João e Sofia vai passear no antigo engenho, estas heranças tornam-se visíveis e audíveis. Nas cenas como a da escola, a do cinema, caminhando pela antiga senzala (de onde se ouvem os passos do 'senhor', no andar de cima) e especialmente na emblemática cena da cachoeira, estes registros do passado tornam-se presentes, sob a forma de uma memória, de uma tentativa de esquecimento e/ou apagamento (como a postura de João na cachoeira, relatada acima; como a senzala transformada em quartos). Esta memória, porém, aparece também sob a forma de ruína – e a ruína aqui seria tanto no sentido físico, como na cena do antigo cinema ou nas fotos do início do filme, ruína no sentido simbólico: ruína de uma sociedade antiga, de valores ultrapassados.
No mesmo período em que realizamos a aula sobre o filme em questão, participei de uma oficina on line, com o artista plástico Glayson Arcanjo. O trabalho deste artista me fez estabelecer vários pontos de contato com o filme e com a tese de Correa; o tema de uma série de trabalhos do artista é justamente a ruína.
A investigação de Arcanjo parte de uma proposta de arte decolonial, ou seja, 'decolonilizar' a prática artística, as referências que historicamente nos constituíram, sempre a partir do olhar estrangeiro europeu (em especial o referencial clássico).
Inicialmente pensamos em vários sentidos para a palavra "RUÍNA":
queda ausência escombro resquício
vazio solidão anterior
ruínas de impérios Egito Roma
tempo passado ciclo final final de um sonho queda
O artista ocupa espaços de ruína nas cidades e a partir daí estabelece relações corporais e/ou dentre os objetos do local com o espaço. Trabalha com os conceitos de memória, destruição e renovação, o novo surgindo a partir da ruína, a ruína abrindo espaço para que o novo apareça.
Todos estes sentidos estão presentes também no filme, como na cena em que o outro filho de Francisco olha para a rua atual e a vê no passado – o saudosismo de algo que não mais existe, ou melhor, algo que foi transformado. A presença e a vingança dos seguranças estabelecem também um novo lugar: não há mais a hierarquia ou, esta não é perene e inatingível como certamente pareceria aos subalternos daquela época colonial.
As ruínas que sobrevivem no tempo presente trazem a lembrança do passado, concretizado nas relações sociais, nos medos, nas buscas por algo novo, nos valores estabelecidos para cada grupo:
A sutileza para tratar da escravidão está no modo como ele articula a temática. Ele mostra a violência em níveis de percepção como se a aproximasse e a distanciasse em movimentos de surgência e ressurgência. Esse é um tema que atravessa o filme. Ela aparece de modo bastante claro nas grades dos prédios e das casas. Mas em outros momentos, ela aparece como insinuações, a exemplo do caso das atualizações da escravidão com a faxineira tratada aos gritos. O diretor destaca a vida comum, a partir dos fragmentos do cotidiano que nos chegam com uma "mostragem-mosaico" (PAIS, 2003). [p.66]
A autora faz uma análise interessante quanto às cores destas ruínas, no caso, as ruínas de engenhos:
Algumas das fotografias do filme são de engenhos. Observando outras fotos, na imagem do Engenho Contendas, muito desgastado pelo tempo, notamos os tons do solo massapê replicados nas paredes. Simmel (p.7, tradução SOUZA E ÖELZE) nos traz uma reflexão sobre as ruínas que vão esclarecer esses tons: "No edifício muito antigo que está no campo, mais especialmente na ruína, nota-se amiúde uma peculiar igualdade de coloração com a tonalidade do chão a seu redor". (p.149)
Quais seriam as cores de nossas ruínas, nas cidades? Penso que se pudéssemos materializar, nossas ruínas urbanas seriam cinzas. O cinza das avenidas que cortam a cidade, dos prédios que se repetem sem graça nas formas e cores, no cinza dos viadutos que 'matam' os lugares/bairros onde se instalam, como por décadas aconteceu na Praça XV, como ainda acontece em parte de São Cristóvão… Em todos estes ambientes o cinza, salpicado do preto do asfalto, dão o tom dos lugares.
Pensando nestas ruínas trazidas pelo filme, pensamos também nas relações a nosso redor: quais as ruínas que vivenciamos em nosso meio?
Contudo, o final do percurso hermenêutico não está na interpretação da proposição de mundo de uma obra, mas no fato de essa interpretação se constituir como uma mediação pela qual compreendemos a nós mesmos:
Aquilo de que finalmente me aproprio é uma proposição de mundo. Esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto. Não se trata de impor ao texto sua própria capacidade finita de compreender, mas de expor-se ao texto e receber dele um si mais amplo, que seria a proposição de existência respondendo, da maneira mais apropriada possível, à proposição de mundo (Ricoeur, 2008, p. 68).
A compreensão de uma obra é também autocompreensão, compreensão de si diante da obra. Por essa mesma razão, a incompreensão de um discurso não isenta o interlocutor já que é coautor dos sentidos produzidos. Assim, a despeito de toda objetividade que possa ser buscada ou de todo método que possa ser empregado, a interpretação depende da experiência subjetiva.
Como professora, pensando nas ruínas que vivencio, lembrei de inúmeras situações escolares nas quais podemos estabelecer pontos de contato com o filme e a tese.
Olhando para os estudantes, percebo tempos de vivência/aprendizado diferentes – alguns acelerados, outros lentos; a falta de pertencimento – do núcleo familiar e/ou escolar – que acarretam comportamentos violentos ou apáticos; a falta de uma noção de grupo, um individualismo crescente, falta de empatia, de colaboração, de aceitação… e sobretudo um número imenso de alunos com quadros depressivos, alunos jovens e mesmo crianças passando por tratamentos psiquiátricos os mais diversos… O que são estes sintomas senão a expressão das ruínas que vivenciamos? Ruínas de valores, de estruturas familiares, de condições de sobrevivência.
Quando falamos de ruína das estruturas familiares não nos referimos a determinado modelo, mas a algo mais profundo: a ruína do ato de educar. A família, seja em qual formato for, não é apenas responsável pela criação material de seus filhos, mas sobretudo por sua formação moral, por seus valores – e isso tem feito muita falta! Uma grande parte desta 'ruína' vivenciada no âmbito escolar provém desta ausência da base familiar.
Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina
No olho da rua
O asfalto, a ponte, o viaduto
Ganindo prá lua
Nada continua(…)
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial[1][1] – Trecho da canção "Fora da Ordem", composição de Caetano Veloso.
Na família de Bia, as relações familiares aparecem como algo frágil, quase não há diálogo. Há a preocupação com a formação intelectual, ao colocar as crianças para aprenderem chinês, há a compra de objetos para o lar, mas não há diálogo. A figura do pai é quase inexistente.
Bia vive uma rotina aprisionada por tarefas e ritos que não trazem crescimento, nem superação.
Pelo contrário, ela se torna uma alienada de sua própria situação, esperando, ao anestesiar-se, um modo de defender-se de um mundo de choques modernos, (…) Ela assiste a degeneração, o modo gasto, ultrapassado das relações capitalistas patriarcais. Está rodeada por decadência, tédio e solidão. Às vezes, algumas cenas dão uma impressão de que Bia parece não ter sentido de viver, uma existência vazia. (CORREA, p.110)
A figura de Bia aparece como esta personagem sem perspectivas, entediada, absorta num cotidiano para o qual não atribui sentido. Neste ponto, e também no aspecto da erotização, da vivência de sua sexualidade, a personagem me lembrou uma personagem constante em uma série de pinturas de Edward Hopper:
Hopper aborda o tema da solidão na contemporaneidade em vários de seus trabalhos. Seus personagens são sujeitos que também nos passam essa apatia, esse realizar de tarefas mecanicamente. Têm em geral um olhar fixo, perdido ao longe, mesmo quando há mais de um personagem em cena. Nestas obras destacadas, especialmente, a figura da mulher muitas vezes aparece nua. Pode haver algum resquício de algo anterior, como o salto alto sob a cama na obra "Nu", mas a personagem não esboça um sentimento, algo que nos permita construir uma narrativa a partir daí. Parecem também querer fugir do ambiente, e a referência também constante usada pelo artista é a janela, sempre presente, com uma vista natural ou urbana, mas há sempre o elemento que transporta para fora daquela realidade.
Voltando a nossa análise da realidade vivenciada, percebemos então que a escola torna-se o espaço onde busca-se suprir o vazio deixado por aquelas ruínas, 'remodelando' estes sujeitos, ajudando-os em sua formação. Muitas vezes a escola acaba atuando para suprir mesmo materialmente estas lacunas, com apoio no vestuário, alimentação, transporte e, essencialmente, no suporte psicológico, na melhoria da auto estima e no estabelecimento da relações sociais.
Em sua tese, Correa nos apresenta a obra de Waldomiro de Freitas Sant'Anna, na qual vemos um grupo de trabalhadores rurais, dos canaviais. Estes trabalhadores não têm rosto, repetem maquinalmente a mesma posição, como Chaplin repete os gestos da máquina em "Tempos Modernos"… O canavial que serve de fundo forma uma barreira, não se vê além, senão uma pequena fatia de céu. Podemos não realizar o trabalho braçal, mas a necessidade de uma produtividade cada vez maior, com condições de trabalho longe das ideais, repercute também em nós como esta 'maquinização' dos corpos e da vida, contribuindo para estas ruínas que vão se formando, nos lapsos que deixamos nos espaços não vivenciados, no tempo não vivido verdadeiramente… Correa faz também uma referência à cena do filme de Chaplin, porém associa a imagem icônica da obra (figura 12) à cena em que o personagem João encontra uma peça de metal, uma 'porca' de parafuso, no momento em que chega no play do prédio onde está tentando realizar a venda de um imóvel (págs. 50 a 53).
Cabe-nos então pensar no papel da educação – tanto a familiar quanto e escolar – para este processo de reconstrução a partir das ruínas.
O campo da educação, principalmente através da arte, é o local onde podemos reconstruir nossa história, criar 'novos personagens'. Se no século XVIII as ruínas representavam uma vontade de rememorar o passado, a partir do século XX, especialmente após as guerras, elas passam a significar uma vontade de crítica da realidade e de reconstrução do mundo, de construção do futuro.
Piranesi: "Vista do templo octogonal de Minerva Medica" (1764).
Na gravura de Piranesi a ruína remete a um passado glorioso que se busca reviver, rememorar. Em uma série de gravuras do artista percebe-se essa intenção nas referências aos templos greco-romanos e a ambientação romântica, bucólica. Já na colagem de Höch, assim como no trabalho de outros dadaístas, as ruínas são apresentadas pela ideia de fragmentação. A partir dos horrores vivenciados após a 1ª Guerra Mundial, o recurso à técnica da colagem surge como uma possibilidade de reconstrução de uma realidade caótica, sem ordem ou lógica. Outras formas expressivas também vão sugerir estes movimentos de fuga/desordem/reconstrução, como ocorrerá no Surrealismo ou do Cubismo, por exemplo. E posteriormente, no pós 2ª Guerra[1].
É interessante que em sua tese Correa todo o tempo articula o filme com a literatura e com as visualidades. "É preciso amplitude", nos diz a autora, na interpretação das imagens do filme (p.80). A autora relaciona, por exemplo, a cena do sangue na cachoeira com a representação de Francis Bacon para a tela "Papa Inocêncio", na qual este artista, por sua vez, faz uma referência à obra de Velasquez. Para a autora, há na imagem de Bacon uma referência também a obra de Munch, "O Grito". Ela cita ainda a série de estudos de cabeças produzidas por Bacon. A desmaterialização da forma humana, adquirindo a forma da própria lama – referência ao solo massapê – é citada também pela autora na obra de João Cabral de Melo Neto, e materializada magistralmente na escultura de Vinícius Consales Rodrigues.
[1] – Algumas destas referências/abordagens foram originariamente propostas pelo artista Glayson Arcanjo, no curso on line "Habitar outros desenhos, desenhar outros lugares", citado anteriormente.
Achei curioso a análise da autora ter se fixado apenas na cabeça dos personagens, especialmente em relação à pintura de Bacon. Na parte debaixo desta tela há justamente uma série de 'grades' em um amarelo muito vivo. A meu ver, estas 'grades' é que levam o personagem ao grito, pois ao mesmo tempo em que materializam o trono, parecem também aprisionar, estendendo para trás e para baixo suas linhas, como uma espécie de ringue ou de algum instrumento de tortura, acoplado ao trono. A roupa do personagem também se projeta contribuindo para o efeito fantasmagórico produzido pelas manchas brancas que se sobrepõe à imagem. Como as imagens da espiral e da grade perpassam toda a tese, achei interessante destacar este recorte.
Interessante também notar que tanto neste retrato quanto no estudo das cabeças os personagens de Bacon gritam, expressam uma tensão; enquanto João, no momento exato e breve da cena do sangue na cachoeira, é apático, não se move e tem o olhar 'morto'. Seu grito precede o sangue, acontece ao entrar na cachoeira, ao contato com a força da queda d'água, como se esta força liberasse algo preso, é um grito que se pretende de libertação. Mas no momento em que a água muda para a cor de sangue, seu olhar é para fora e seu corpo fica inerte.
Uma outra referência interessante que a autora nos traz é a do sociólogo Simmel:
Na sociologia de Georg Simmel tudo parece provisório e experimental, nada é produto finalizado, são retratos da realidade nos quais se abstrai a totalidade, mas demonstrando atenção aos fragmentos. Seria uma ambivalência do social na qual a realidade apenas se insinua, não se dá a ver.
Na perspectiva de Simmel, a realidade deve ser imaginada, descoberta e construída (PAIS, 2003: p. 27). Justamente esses fragmentos da teoria simmeliana que nos interessam, a partir deles desvendamos os fragmentos cotidianos e os fragmentos do passado no presente chegando ao entendimento desse Recife de agora. Percebemos onde estaria a origem do mal-estar tendo por base a montagem-grade para analisar o trabalho do diretor. (p.67/ grifo meu)
Ou seja, a partir dos fragmentos da realidade vamos compreendendo as relações do passado com o presente. O filme nos leva justamente a este movimento pois, conforme já comentamos antes, há vários personagens/núcleos cujas tramas têm relativa autonomia e quase todos têm o mesmo grau de importância. Isso confere ao filme uma percepção e um modo de recepção diferenciado do que estamos habituados (personagens principais determinando uma história linear, e os secundários auxiliando a contar esta história). Em "O Som ao Redor", todas as tramas trazem sua própria história, passando pela herança escravocrata, pela violência, mas também falando de ocupação urbana e especulação imobiliária, milícias, dentre outros assuntos.
Para finalizar, pensando neste papel da obra de arte como local de denúncia e crítica da sociedade, lembrei de um outro artista, Maxwell Alexandre. Também durante a realização do curso "Arte e Sociedade" ocorreu o evento ArtRio, na Marina da Glória, onde o artista expunha junto a outros artistas contemporâneos. O trabalho de Maxwell é também de denúncia e crítica social, através da representação de cenas do cotidiano das favelas, em especial a questão da violência policial praticada.
É certo que a arte não tem por função ou obrigação a transformação direta do mundo… mas é interessante pensar em como o objeto artístico torna-se também apropriado e realimenta o mesmo sistema que está criticando… Somente o ingresso para o evento ArtRio já era caríssimo; não havia qualquer previsão de gratuidade… ou seja, grande parte da população já é a priori excluída do evento. Lá dentro, galeristas e colecionadores, em um mercado de altos valores… Mesmo o ambiente em si, na Marina da Glória, já 'diz a que veio', com suas áreas externas vigiadas e gradeadas. Os compradores destas obras de arte, longe de serem pessoas identificadas com o tema, ao contrário, fazem parte do mesmo sistema que está sendo denunciado. E o trabalho de denúncia, do artista também de origem humilde, convive no local… Contradição? Inserção? Difícil avaliar… Em todas as obras de cunho social, como no trabalho de Mendonça Filho, creio que estas questões se façam presentes. Contudo, é essencial a denúncia e o papel de despertar o olhar e o pensamento crítico, papel este que a arte tão bem desempenha.
A obra de Mendonça Filho nos propõe inúmeras questões para reflexão; trata-se de um filme complexo, seja qual for o parâmetro de análise utilizado – a partir da literatura, da sociologia, da simbologia das imagens, da construção psicológica dos personagens… Há muito a ser explorado e debatido, pois apesar do cineasta expor uma realidade local, seu alcance é nacional, pois são questões intrínsecas a nossa formação como povo.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, R.; PELEGRINI, C.H. "Os textos críticos sobre o filme O Som ao Redor, seus
pressupostos estéticos e desdobramentos hermenêuticos". São Paulo: USP, 2016.
ARCANJO, Glayson. "Desenho e demolição: abordagens acerca de uma pesquisa em desenho
em espaço urbano". MG: Universidade Federal de Uberlândia, 2018.
CORREA, Laura Josani Andrade. O som ao redor: leituras, memória e ruína. Florianópolis:
UFSC, 2017.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.