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Arte e Inconsciente

GvCult - Uol

08/11/2022 06h56

Fonte: Imagens da Internet

Por Gisele Dias Costa

Mestrado Profissional "Bens Culturais e Projetos Sociais"

Disciplina: Arte e Sociedade

Professor: Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Introdução

            Diante das diversidades de produções artísticas, pode-se pensar o que há por trás da criação, do processo criativo e da inclinação para produzir determinado tipo de arte. Culturalmente, é possível entender o trabalho da arte como um produto das organizações do mundo. Becker (1977) afirma que as pessoas, através de suas convenções e suas cooperações entre si, produzem este trabalho. Por sua vez, Coli (1995) realça o papel da cultura na interpretação do que é considerado arte. Assim, entende-se a cultura como uma variável importante para a elaboração de produtos artísticos.

Por outro lado, variáveis psíquicas também são consideradas neste quesito. A Psicanálise entende o Inconsciente como parte importante da criação de obras artísticas. Ao mesmo tempo em que a arte torna-se uma possível via de comunicação deste Inconsciente, também se apresenta como possível instrumento de trabalho a profissionais da clínica psicanalítica.

O trabalho em tela procurará explorar alguns conceitos que entendem a correlação da Arte com o Inconsciente e como esta conexão pode ser explorada tanto para o trabalho do terapeuta como para análise de algumas obras e artistas. Serão consideradas neste ensaio a teoria Psicanalítica de Freud e de Jung, considerando os trabalhos desenvolvidos por Nise da Silveira, bem como uma análise das obras de Luiz Ruffato e Eduardo Coutinho de acordo com a bibliografia pesquisada.

  1. Arte como "produto" do Inconsciente

"…o estatuto da arte não parte de uma definição abstrata, lógica ou teórica, do conceito, mas de atribuições feitas por instrumentos de nossa cultura, dignificando os objetos sobre os quais ela recai." (COLI, 1995, p.11). Jorge Coli, através desta reflexão, pretende mostrar que o conceito de arte perpassa por diversas variáveis e ressalta o papel da cultura nas definições do que é ou não considerado arte. Becker (1977) reforça que as produções artísticas no mundo são produtos deste próprio mundo, das experiências proporcionadas por ele e das ações das pessoas sobre ele. Apreende-se destas observações a importante questão cultural como alimento da arte: como ela é produzida, como é organizada socialmente e como o ser humano a interpreta a partir do grupo social em que está inserido. Entretanto, a organização social vincula-se a alguma organização psíquica, cujo entendimento de sociedade e, neste caso, da arte, será influenciado por esta ordenação. Ora, ao tomar-se como base uma estrutura social de pacientes psiquiátricos, como esta organização formula o entendimento e a produção de arte?

Para responder a este questionamento, existe um conceito extremamente debatido e explicado de maneira diversa na Psicanálise que precisa ser abordado: o Inconsciente. García-Roza (2009) dialoga sobre os diversos modos de entendê-lo, passando por teóricos como Lacan, Laplanche, Jung e o próprio Freud. Esta é uma discussão infindável se formos considerar todas as linhas existentes dentro da Psicanálise e, por isso, para analisarmos com mais praticidade o tema "Inconsciente e Arte" aqui discorrido, consideraremos os conceitos freudianos e jungianos, este último, um importante discípulo de Freud. O Inconsciente freudiano possui uma linguagem com base em estrutura e determinações próprias, apresentando uma função simbólica.

Os conteúdos reprimidos, ou seja, desejos "incompatíveis" com o social, constroem este sistema. Jung (2014) critica a teoria freudiana de basear-se em postulados da repressão proveniente da educação/socialização como constituintes do Inconsciente, pois entende que é uma instância muito além de representações reprimidas. Defende que o Inconsciente é, na verdade, "todo material psíquico que subjaz ao limiar da consciência" (JUNG, 2014, p.15), apresentando uma linguagem simbólica própria. Desta forma, ele entende o Inconsciente como algo muito maior: o consciente é uma ilha, enquanto o Inconsciente é representado por um oceano.

Retomando o questionamento anterior, existem diversos estudos e iniciativas que pressupõem a Arte como "produto" do inconsciente. Nise da Silveira (1981) foi pioneira no Brasil ao iniciar sua clínica terapêutica através de um ateliê de arte no Hospital Psiquiátrico (chamado à época de Pedro II), no Engenho de Dentro, bairro do Rio de Janeiro. Foi uma longa trajetória[1] de estudos, resistências externas e resiliência para que consolidasse este trabalho junto aos pacientes. Neste cenário, a psiquiatra traçou uma importante relação entre arte e produções do Inconsciente – a arte dos esquizofrênicos apresentava-se como uma linguagem simbólica dos processos inconscientes que deveria ser "traduzida", interpretada, pelos terapeutas. Contudo, pelo seu ponto de vista, muitos dos psiquiatras atuantes na área recusam a atribuição de valor de arte a estas produções ao passo que os próprios artistas reconhecem o belo e a estética deste trabalho.

  1. A arte como instrumento de análise terapêutica

Os trabalhos desenvolvidos por Nise da Silveira analisam formas geométricas, o afastamento de figuras humanas, a fuga de figuras reais, por exemplo, como forma de expressões inconscientes. Porém, cabe dizer que Nise (1981) reforça a teoria jungiana de inconsciente como linguagem simbólica, e, neste sentido, entende que as características das obras possuem uma linguagem recheada de significados que dizem respeito à subjetividade daquele paciente. Ou seja, mesmo analisando as formas, cada significado, cada análise são individuais e não se aplica uma espécie de "dicionário de significados" às produções artísticas. Isto porque esta linguagem é abstrata e criada a partir das forças do movimento do Inconsciente, que é constituído diante da experiência daquele sujeito.

Ela também destaca a importância de avaliar o próprio processo produtivo em si, isto é, para Nise, não cabe ao analista avaliar a obra isoladamente quando se quer lançar mão da arte como instrumento terapêutico, mas avaliar o paciente no momento em que ele está em seu processo de criação: suas expressões, suas posturas, a forma que conduz o pincel ou modela uma arte plástica.

Quando o paciente se encontra em terapia, ele utiliza a fala como principal via de expressão do inconsciente e seu terapeuta se utiliza da escuta como instrumento de seu trabalho. Neste sentido, Frayze-Pereira (2003) descreve o processo artístico como uma forma que o esquizofrênico encontra de falar, de se comunicar. Por isso, a arte se torna tão terapêutica para este paciente – seu afastamento da realidade, muitas vezes, impede que ele se comunique de maneiras convencionais e, assim, encontra na arte uma forma de se expressar.

Silva, Viana e Souza (2022) explicam que a Psicanálise freudiana toma como princípio importante o processo de sublimação, quando pulsões relativas a desejos incompatíveis com a vida social sofrem uma descarga através de comportamentos aceitos socialmente, garantindo alívio psíquico e satisfação àquele indivíduo. Os autores, assim, descrevem a arte como uma opção de descarga pulsional, quando o sujeito traz seus desejos inconscientes na forma criativa. Por esta razão, é possível acessar os conteúdos inconscientes ao analisar uma obra de arte no contexto clínico terapêutico.

Eles explicam, então, que a arte pode ser um dos instrumentos a ser utilizado em terapia, pois facilita a compreensão dos processos inconscientes que não aparecem através da fala:  "A arte vem, muitas vezes, como uma via de acesso aos conteúdos do inconsciente mais fácil que a própria fala, pois, ao iniciar o processo psicoterapêutico, o paciente poderá vivenciar bloqueios ao se deparar com o próprio discurso, devido às resistências." (SILVA, VIANA e SOUZA, 2022, p. 15).

Assim, entende-se a arte como um importante instrumento que o terapeuta psicanalítico pode utilizar no intuito de acessar conteúdos inconscientes, facilitando o trabalho de análise.

  1. A relação da arte com o inconsciente: os tipos de artistas e suas produções

Becker (1977) descreve a "tipologia dos artistas", ressaltando que há quatro tipos de artistas no mundo. Oportunamente, destacarei dois tipos explicados pelo antropólogo. O primeiro deles, ele nomeia como profissional "Integrado", aquele que faz sua arte baseada nas convenções sociais. Seus trabalhos teriam um público numeroso e receptivo. As dificuldades são menores para estes artistas, mas isso não significa dizer que elas não existam. Os artistas querem "vender" suas obras a partir de seu ponto de vista, querem que sejam interpretadas da maneira que foram originalmente pensadas e que seja uma interpretação que favoreça este artista. O segundo tipo, Becker chama de "Inconformista", quando o artista não se associa com as convenções sociais porque acha esse mundo muito restrito. Com isso, enfrenta dificuldades para mostrar seu trabalho e para conquistar o público. Eles também ignoram instituições artísticas convencionais (como museus e teatros) e têm vontade de conquistar o mundo convencional, querendo que este mundo se adapte as suas convenções. Contudo, este artista tem alguns focos específicos para mudar convenções, aceitando algumas regras convencionais para executar o seu trabalho.

Os tipos organizados por Becker podem ser compreendidos na teoria discorrida em capítulo anterior. O que leva alguém a ser convencional e a querer um público numeroso e receptivo? E o que leva um artista a querer não compactuar com as convenções sociais? A forma de fazer a arte, a quem querem destinar eu trabalho, o conteúdo de suas letras de música e poesias, seus desenhos e esculturas refletem a subjetividade destes artistas e, portanto, seus processos inconscientes.

A título de exemplificação, o escritor Luiz Ruffato traz em suas narrativas uma tendência às críticas sociais no Brasil. Durante seu discurso na abertura da Feira do Livro de Frankfurt de 2013, o autor reuniu vinte parágrafos de duras críticas às contradições da sociedade brasileira com referência às desigualdades sociais e econômicas, o individualismo presente nesta sociedade, entre tantos outros pontos. Vale ressaltar que o público presente durante sua leitura era de autoridades nacionais e internacionais. Alves (2016) analisa o quanto o autor, posteriormente, foi alvo de críticas de profissionais literários, mas é importante destacar alguns pontos relevantes para a discussão do trabalho aqui discorrido. Luiz Ruffato, como é possível ler na Enciclopédia Itaú Cultural (2020), veio de classe média baixa, era filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira. Formou-se em um curso de torneiro mecânico, trabalhando como operário em indústria e, após, teve a oportunidade de se formar em Comunicação Social pela Faculdade de Juiz de Fora.

Esta breve trajetória nos permite entender algumas possíveis dificuldades sociais enfrentadas pelo autor. Durante seu discurso em 2013[2], Luiz Ruffato aparenta nervosismo e, diversas vezes, colocações mais enérgicas. O resultado de seu trabalho foi uma crítica transformada em arte – poesia –, mas o que o levou a escrever as críticas e, além disso, o que o levou a fazer aquela crítica para aquela plateia, naquele evento? Pode-se perceber uma sublimação de pulsões, possivelmente, agressivas, vinculadas à revolta e a sentimentos que eventualmente tenha experenciado antes de se tornar escritor diante das dificuldades que já enfrentara. As palavras escolhidas, a forma que foram proferidas, o formato do texto e todas as demais escolhas para divulgar sua arte são resultado de processos subjetivos e, algumas vezes, inconscientes. Por certo, Becker o classificaria como um tipo de artista Inconformista e aqui, poderíamos realizar uma compreensão mais ampla das razões que o fazem ser Inconformista, o quanto sua subjetividade e processos inconscientes aparecem em sua obra e como afetos "incompatíveis socialmente" podem ter sofrido sublimação para que viesse ao público em forma de arte crítica.

Por outro lado, cabe dizer que a arte também se utiliza dos próprios processos inconscientes para fazer-se arte. Como supracitado, Nise da Silveira usava as peças produzidas por seus pacientes como parte do trabalho de análise. Em paralelo, foi fundado o Museu do Inconsciente, que traz exibidas as obras produzidas por pacientes psiquiátricos. Outro exemplo em que a Arte se utiliza da aproximação com a subjetividade de forma quase analítico-terapêutica, é no filme Jogo de Cena, produzido por Eduardo Coutinho em 2007. Entre tantas observações que podem ser traçadas a respeito do filme, pode-se destacar a atuação do próprio diretor com intervenções e falas que lembram o trabalho de um terapeuta.

Como as mulheres trazem sofrimentos profundos e íntimos à câmera, como expõem suas particularidades e como a escuta do telespectador também se torna a escuta de um analista. Diante da catarse de falas, o telespectador acessa um mundo invisível da entrevistada, o que certamente não aconteceria se ele próprio estivesse conversando pessoalmente com aquela mulher. O filme obriga-o a escutar sem interferir e, se o telespectador se permitir, é possível entrar no mundo daquela narrativa e fazer uma análise dentro daquela realidade, desprovendo-se de julgamentos. O diretor se utiliza do mecanismo de condução de um processo analítico, trazendo a "beleza" do dinamismo do Inconsciente para fazer Arte.

Por este ângulo, consegue-se perceber uma conexão entre Inconsciente e Arte através do tipo de artista e o formato de suas obras, bem como a Arte traz para o palco o Inconsciente como protagonista daquela criação.

Conclusão

O presente trabalho pretendeu discorrer sobre como a arte aparece como produto de processos inconscientes e como isto pode ser explorado na terapia clínica por analistas. Pretendeu-se também analisar algumas obras com base na visão psicanalítica de Jung e Freud e entender a relação do Inconsciente e da Arte.

Pode-se concluir que a arte é uma importante via de comunicação de um paciente em terapia, através da linguagem do Inconsciente e que, cabe ao terapeuta analisar esta linguagem simbólica para enriquecer o processo de análise. A arte também utiliza o Inconsciente como alvo do processo artístico, como nos casos do Museu do Inconsciente e em Jogo de Cena, filme de Eduardo Coutinho. Arte e Inconsciente são correlatos e ambos produzem incríveis resultados no campo psicanalítico assim como no campo artístico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, V.S. O discurso de Luiz Ruffato em Frankfurt: polêmica, recepção inicial e paradigmas em disputa. Revista Estud. Lit. Bras. Contemp., n.48, 2016, p. 149-176.

BECKER, H.S. Mundos artísticos e tipos sociais. In: VELHO, G. (org). Arte e Sociedade: ensaios de sociologia da arte. Editora Zahar, 1977, p. 9-26.

COLI, J. O que é Arte. 15ª ed., Editora Brasiliense, 1995.

FRAYZE-PEREIRA, J. A. Nise da Silveira: imagens do inconsciente entre psicologia, arte e política. Estudos Avançados, v. 17, n. 49, 2003, p. 197-208.

GARCIA-ROZA, L.A. Freud e o Inconsciente. 24ª ed., Editora Zahar, 2009, p. 168-195.

JUNG, C.G. O eu e o Inconsciente. Edição Digital. Editora Vozes, 2014, p. 15-27.

LUIZ, R. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa3628/luiz-ruffato. Acesso em: 30 de outubro de 2022, às 12:00. Verbete da Enciclopédia.

SILVA, G.H., VIANA, D.S., SOUZA, J.R. A Arte como instrumento do Inconsciente: imagens que revelam o sujeito. Revista Interdisciplinar de cultura e imagem, v. 12, n. 32, 2022, p. 8-21.

SILVEIRA, N. Imagens do Inconsciente. 3ª ed., Editora Alhambra, 1981, p. 13-49.

[1] O trabalho construído por Nise da Silveira pode ser assistido no filme, produzido em 2015, de Roberto Berliner, "Nise – O Coração da Loucura". A produção baseia-se em fatos reais e retrata a trajetória da psiquiatra no Hospital Psiquiátrico Pedro II (posteriormente nomeado como Instituto Nise da Silveira). O filme mostra a dificuldade que ela enfrentou ao ir contra aos métodos de eletroconvulsoterapia e lobotomia, muito utilizados em pacientes esquizofrênicos graves. Ela assume o setor de terapia ocupacional e passa a tratar os pacientes utilizando a arte como base para terapia. Pode-se dizer que foi uma das pioneiras na luta antimanicomial.

[2] Vídeo do discurso do Luiz Ruffato de 2013, visto em 30/10/2022, às 11:50, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tsqcziX5_6E>

Edição Final: Guilherme Mazzeo

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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