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Racismo cordial

GvCult - Uol

19/04/2021 07h11

SÃO PAULO, SP, 21.11.2020: PROTESTO-RACISMO-SP – Artistas pintam inscrição '#Vidas Pretas Importam' em frente ao Masp, na avenida Paulista (região central de SP), após a morte de um homem negro em Porto Alegre. (Foto: Bruno Santos/ Folhapress)

Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea – CPDOC/FGV

Escola de Ciências Sociais

Disciplina: Interpretações do Brasil

Professor: Bernardo Buarque de Hollanda

Por Maria Julia de Moraes Atty e Renê Bastos Ventura

A História foi, por muito tempo, pensada, escrita e contada a partir da concepção, de grandes eventos e, da perspectiva de grandes líderes, os heróis. Mas, esse modo de pensar a história foi questionado, complexificado, com autores como Marc Bloch, Edward Carr, Jacques Le Goff, Paul Veyne e entre outros, que repensaram o papel do historiador, da história em si, do tempo, do documento e a estrutura da escrita.

Ainda nesse âmbito, surge a micro-história, com historiadores como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Le Roy Ladurie, possibilitando novas formas de analisar os fatos históricos, a partir de novas lentes de análise, que, ajustando ao micro, enriquecem e elucidam o macro. Seguindo esse modo de fazer história, Boris Fausto, historiador paulista, escreve o livro O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30.

O episódio central é a chave de abertura de caminhos mais amplos, sejam eles, entre outros, o funcionamento do aparelho policial e judiciário, o racismo, a discussão da natureza da criminalidade, do perfil dos infratores etc. De qualquer forma, se o leitor não quiser se deter na questão da relevância, quem sabe, mergulhando na leitura, encontrarão prazer da leitura de uma boa história (FAUSTO, 2009, p. 10)

Mas, como é possível um único acontecimento falar sobre carnaval, futebol e justiça? E de que forma ele nos ajuda a compreender a sociedade que o experiencia? As respostas podem ser complexas, assim como entender esse crime, que ocorreu em 1938 na cidade de São Paulo, na rua Wenceslau Braz, número 13, em um restaurante chinês, pertencente ao casal Ho-Fung e Maria Akiau. Para interpretar, então, a tríade compositora da narrativa é necessário analisar, pensando nos âmbitos da micro-história, minuciosamente os relatos e documentos, mas principalmente, a cordialidade, que assombra os envolvidos.

A obra é dividida em 16 capítulos, aliados a uma breve explicação e a introdução. Nessas seções, Boris Fausto inicia narrando como o crime do restaurante chinês foi descoberto, pelo empregado Pedro Adukas, em plena Quarta-Feira de Cinzas, deparando-se com os corpos de José Kulikevicius e Lindolfo Rocha, também funcionários do restaurante, e dos proprietários, Ho-Fung e Maria Akiau.

Salienta-se que a chacina ocorreu em São Paulo, no Centro Velho, região que se destacava pela grande variedade de imigrantes – portugueses, espanhóis, chineses, japoneses, italianos e migrantes do Nordeste e Minas Gerais – pelo papel ativo da imprensa, pelo envolvimento ideológico da população, e pelo grande desenvolvimento comercial.

Sobre a imigração, percebe-se, quando o autor da obra narra o passado de Ho-Fung e Maria Akiau e, mais tarde de Arias, a ideia de plasticidade proferida por Gilberto Freyre[1] (2001), que apesar de pautar-se na colonização portuguesa, relata o processo de adaptação, ou seja, a tentativa de ajustar-se a um novo local em busca de melhores condições de vida e, aproveitar ao máximo o que este local pode fornecer. E é o que se apreende da história de vida, desses agentes do livro: a busca por oportunidades e adaptação.

Todavia, embora, São Paulo fosse uma região multiétnica, não havia uma total aceitação e respeito por parte daqueles que lá viviam. Boris Fausto aponta que aliado ao cinema norte americano e a outros fatores, criou-se um estigma de crueldade, principalmente, referente aos chineses e, ao longo do desenrolar da história nota-se como esse olhar ocidental, esse sentimento ocidental, corroborou, por exemplo, na escolha dos suspeitos, no tratamento desses e no modo como questionaram e expuseram o passado dos donos do estabelecimento[2].

Então, assim que esse crime foi descoberto despertou grande interesse popular. Inúmeras capas de jornais e tempos nas rádios foram destinados a falar sobre esse grande crime[3]. O acontecimento foi até moda de viola cantada pelos Irmãos Laureano, tamanha comoção popular. Desse modo, a imprensa, às vezes sensacionalista, às vezes ponderada, aliada a população, pressionava por respostas, logo, a busca por suspeitos e por pistas se intensificava.

Havia, então, um certo fator emocional[4] envolvendo o crime do restaurante chinês, como a manhã de uma final de copa do mundo ou uma sexta-feira de Carnaval. A busca por suspeitos, mas principalmente, a divulgação desses, era muito aguardada.

João Akiau, irmão de Maria Akiau, foi um dos primeiros suspeitos. Um suspeito perfeito, porque carrega com ele o estigma criado dos "amarelos", uma história vendável, emocional, entretanto, foi facilmente desmentida. Outro chinês, João Agin, o Ho Det Men, visto na terça-feira de carnaval na rua do restaurante, também foi colocado como suspeito. Esse ganhou ainda mais destaque nos jornais quando seu companheiro de quarto disse que não queria acusar ninguém, quando foi lhe mostrado um paletó encontrado perto da cena do crime. Ho Det Men também possibilitava a construção de uma história emocionante, cativante, mas diante do repórter policial do jornal A Gazeta, sua suspeita foi encerrada quando negou ter posse sobre o paletó, quando esse não o vestiu bem e quando seu alfaiate negou ter feito.

A história emocionante ganhou outras proporções, outras emoções, quando um novo suspeito foi encontrado, Arias de Oliveira. Esse foi apontado como possível atuante do crime, graças ao depoimento de Manoel Custódio Pinto, o Maneco, que em sua declaração relatou que por 16 dias havia trabalhado um homem negro, forte, capaz de abrir a porta de ferro do restaurante sozinho, e afirmou que esse dormia no estabelecimento e que na sexta-feira, que antecede o carnaval, Arias pediu demissão, para aproveitar as festividades.

Maneco alegou também que Arias foi visto 2 ou 3 vezes em frente ao restaurante, com outro preto, e na terça-feira de carnaval voltou ao local do crime para pedir seu emprego de volta, o qual Ho-Fung aceitou. Então, a terceira cama vazia, ao lado das camas dos falecidos empregados, poderia ser desse, assim descrito, homem forte.

A partir do testemunho de Manoel Custódio, e de outros fatores, os investigadores construíram uma linha de raciocínio[5] que coloca Arias no centro do crime. Refletiram que, para que um empregado durma no local de trabalho seria necessário ter a plena confiança dos donos, nesse âmbito, infere-se que Arias detinha certa intimidade com o casal chinês. Mas como saberia do cofre? Maneco expôs que os donos costumavam abrir o cofre na frente dos empregados para retirar os trocos, logo Arias possuía esse conhecimento.

Sobre confiança, outros testemunhos expuseram também, que Maneco era o que tinha maior aproximação com os patrões, já que era responsável por recepcionar, no dia da visita, os fiscais da sanitária e a recebedoria de rendas, e trabalhava no restaurante a 5 anos. Suspeito. Todavia, Manoel Custódio não foi o único a apontar Arias de Oliveira como o possível infrator do crime, houve também as alegações de Gonçalo Pereira, que já trabalhara no restaurante, e o possível encontro com Otília de Oliveira.

Com toda a comoção popular que cercava este caso, não demorou para que os jornais descobrissem quem era o preto suspeito e, com toda a cordialidade, sentimentalismo ou sensacionalismo, jornalística traçar o perfil de Arias: monstro, desalmado, criminoso e tarado. Mas, havia também, no meio de tantas manchetes acusatórias, o jornal Estado de São Paulo, que o descreve como dono de um "olhar franco e simpático" (FAUSTO, 2009, p. 55), sobre isso, pode-se pensar, que talvez esses jornalistas não tenham deixado se contaminar com o geral, e observaram inteiramente aquele indivíduo, separaram o público e o privado, ou que apenas reproduziram o que outra parte da população também comentava.

Mas quem era Arias? Os principais jornais, e os investigadores, preocupavam-se em contextualizar o monstro que enxergavam, por isso observavam a história de Arias, mas já o colocando como possível criminoso. Arias de Oliveira detinha um bom histórico profissional em Franca, não tinha passagem na polícia e tinha o sonho de ser motorista na grande cidade. Foi a São Paulo, buscando o emprego dos sonhos, porém, para conseguir sobreviver, candidatava-se aos empregos que surgiam, assim chegou ao restaurante. E, para além do sonho principal, Arias também almejava vivenciar o carnaval de São Paulo, a magia e a folia de uma grande cidade, por isso pediu demissão.

Um homem, então, pede demissão do trabalho para aproveitar o carnaval. Um homem preto.

A cidade de São Paulo, como um grande polo de desenvolvimento, detém um imaginário que preza, ou acredita que deve prezar, por princípios morais capitalistas, como descrito por Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Nessa lógica o público e privado não misturam-se e, o trabalho é a prioridade.

Ao falar de Carnaval, deve-se pensar, para além das marchinhas e fantasias, nas questões raciais explícitas. Lélia Gonzales (1984), antropóloga, política e escritora, aponta que nesse ínterim, os negros saem das manchetes das colunas policiais e vão para as capas serem exaltados. Entretanto esse destaque, é circundado pelo olhar de posse, sexualização e objetificação. Um centro controlado e animalizado. Assim, a autora também retrata, que fora desse período festivo, esses corpos são enxergados apenas a partir da lente do estigma criminoso, são tratados como marginais, como malandros.

À malandragem, associa-se à ideia de sempre dar um jeitinho, não gostar de trabalhar, mas de se aventurar, e não se fixar, ser levado pelos instintos, pela emoção e é claro, há a questão racial, de vincular isso inteiramente ao corpo negro. Isso assemelha-se à ideia de homem cordial de Sérgio Buarque[6] (2016).

O historiador e sociólogo, ao fazer uma análise sobre as raízes do Brasil, aponta como a colonização portuguesa, que se distingue da colonização espanhola, por ser "semeadora" portanto, pautada na aleatoriedade, na aventura, na emoção e, no olhar para fora, constituiu as características desse âmbito cultural brasileiro. Esse homem cordial, esse homem brasileiro, é emocional, não separa estritamente o público e privado, é impulsivo, é capaz, por exemplo, de pedir demissão para apreciar o carnaval.

Fausto, ao falar sobre o carnaval de São Paulo daquele período, o descreve como sendo um Carnaval mais discreto, quando comparado, por exemplo, ao do Rio de Janeiro, devido a fatores como: ser uma cidade repleta de imigrantes, pelo ethos de desenvolvimento que zela por essa a polidez[7]. Nesse âmbito, ao pensar no caso de Arias, a forma como esse foi analisado pela sociedade paulista da época, infere-se que a questão racial mais presente não é a do centro controlado, mas a ideia de malandro.

A partir desse ethos paulista, esse modo de lidar com o carnaval e a questão racial, o estigma em torno de Arias como um possível suspeito intensificou. É impensável um homem largar o emprego para a "farra". Todavia, é importante salientar que, segundo a ideia de Buarque, esse "homem cordial" está presente na cultura brasileira, então mesmo que os paulistas, carreguem essa premissa da moralidade e, vejam em Arias, aliado ao racismo estrutural[8], a encarnação desse homem cordial, em que tentam afastar-se, ainda assim são cordiais. Visto que é um fator cultural, que nos cerca desde a colonização. A cordialidade paulista fica explícita em diversos momentos da história, como no envolvimento da imprensa, no modo como as investigações foram conduzidas, nas defesas e acusações, na Copa de 1938, e, até mesmo na possível raiva ao ver um homem negro se divertindo em vez de trabalhar. Então, pode-se dizer que, essa repulsa a cordialidade de Arias transparece a cordialidade da sociedade paulista.

Arias então foi detido. E ainda nessa tentativa de manterem-se puramente racionais, morais, os investigadores recorreram a métodos com influência da Escola Positivista, as análises antropopsiquiátricas, que se utilizam de determinismos biológicos e chaves analíticas perpassadas pelo racismo. Esse olhar que preza por encontrar as respostas no corpo, no ambiente, não é novidade dessa década, em Os Sertões, de 1902, de Euclides da Cunha[9], já havia a influência latente da escola positivista francesa, de Augusto Comte. Então, pode-se dizer que esse método ganhou certa notoriedade, entretanto, pontua-se que havia críticas, principalmente na utilização desse na área médica e jurídica.

Arias de Oliveira confessou o crime. O homem negro, detido desde a primeira suspeita, fotografado dos pés à cabeça, interrogado por muitos, não compreendeu inteiramente todas as falas daqueles exames e, segundo Boris Fausto, já sabia que não havia escapatória da condenação. Então confessou. Entretanto, mesmo que os policiais, pensando em possíveis acusações, tenham acionado a imprensa para testemunhar a confissão, e com isso tenham recebido pedidos de desculpas de alguns jornais, por terem duvidado da capacidade desses em achar o criminoso, existiram, ainda assim, suspeitas quanto a veracidade das falas de Arias, ao alegar a responsabilidade do crime dizendo: "eu sou o criminoso, mas não sei explicar" (p. 124).

A Frente Negra Brasileira, questionou essa confissão "espontânea" e, com isso, contrataram o advogado, Paulo Lauro, para defender Arias. O defensor, muito interessado com os benefícios que poderia ter, caso vencesse o caso, bem cordial, recorreu ao médico Pacheco e Silva, crítico da análise positivista na criminologia, que apontou possíveis erros desse método. Pedro Lauro também alegou, defendendo Arias, que esse era apenas um troxa que a polícia responsabilizou por um crime com grande repercussão[10].

Refletindo a partir do que já foi exposto, infere-se que a categoria homem cordial, mesmo com esse suposto ethos de moralidade que São Paulo agarra-se, transparece no processo de acusação de Arias Oliveira, na presença forte da imprensa, na grande comoção popular que o caso gerou, no possível sentimento de revolta com o pedido de demissão de Arias, na tentativa científica pautada no racismo estrutural e nos discursos raivosos dos investigadores ao tratarem de Arias. Todavia, é importante apontar, que esse homem cordial, também se mostra nas questões que envolvem a soltura desse personagem.

Antes do julgamento, Boris Fausto fala sobre a copa do mundo, que houve nesse ínterim, e como foi a recepção dos paulistas a esse evento. O historiador falou sobre a grande necessidade de mostrar aos outros Estados que embora tenham muitos imigrantes, havia muito nacionalismo. E de fato houve, a cidade que não para, agrupou em suas atividades o fanatismo futebolístico, e vendeu muito apoiando-se nesse. A cordialidade que, de certa forma, tentavam afastar-se esteve bem presente, houve, então a mistura do público e do privado, a impulsividade, o sentimentalismo. Um dos exemplos disso é a possível associação que o autor da obra realiza entre Arias de Oliveira e o craque Leônidas por parte da população, que pode ter influenciado na mudança da história do interiorano.

Houve então o primeiro julgamento, atravessado por grande comoção popular, todos queriam saber o rumo da história, havia os que torciam por Arias e os que concordavam com a avaliação da polícia e pautavam-se na existência de uma confissão. Os dois advogados, movidos por interesses pessoais, exerceram seus papéis com maestria, ambos queriam conquistar júri, que mesmo formado por médicos, optou pela defesa, portanto, pela inocência de Arias, que detinha um discurso carregado de sentimentalismo.

Então, após as colocações, o placar foi de 4 a 3, resultando na primeira vitória de Arias. Todavia, a disputa continuou, a promotoria não desistiu, e foram todos para o segundo tempo. Dezenove meses depois do primeiro julgamento, voltaram ao Tribunal de Justiça com a plateia até maior. O caso ganhou ainda mais atenção, a imprensa dividia-se, mas a população estava quase toda convicta de que Arias não seria capaz de cometer uma chacina como aquela.

Mais uma vez Arias ganha a partida, estabelecendo-se assim, de forma mais concreta, a liberação do réu. A torcida de Arias, maior que no primeiro tempo, comemorou freneticamente, como se o Brasil tivesse ganhado aquela Copa de 1938 com um gol do Leônidas, ou como se visse o desfile de carnaval das passistas. Estaria Arias no tal centro controlado?

Depois do segundo julgamento ainda houve pedidos de revogação, mas sem êxito. Outros suspeitos foram levantados pela imprensa, uma possível máfia chinesa, mas não houve insistência na busca. Os investigadores, detentores de toda a racionalidade e polidez, estavam convencidos de que encontraram o autor do crime, Arias, por isso não seguiram com as investigações.

Essa foi a história do crime do restaurante chinês, a história explicitada por Boris Fausto, que ao final do livro expõe o porquê resolveu ajustar sua lente, para esse micro. O autor pontua suas próprias memórias do crime, ainda muito novo e, nesse âmbito, fala sobre uma lembrança assustadora, que circulou pelas redondezas paulistas, de uma menina de traços orientais que estava no restaurante e quando encontrada, exclamava: "peto, peto". Como investigador, Boris Fausto procurou registros nos Autos judiciais, nos jornais, nas rádios e nada foi encontrado sobre a garota. Será então um rumor?

A presente resenha teve como objetivo analisar o livro O crime do restaurante chinês de Boris Fausto e ao observá-lo, nota-se como a categoria homem cordial e o racismo estrutural se fazem presentes no processo da prisão e da soltura de Arias, e até mesmo no impulso que fez Fausto escrever a obra, e o mais irônico, em uma cidade que se divulga como estabelecida a partir do ethos, circundado pela polidez, da moralidade capitalista.

São Paulo, a cidade que preza pela polidez, não foge do que Sérgio Buarque descreve como as raízes do Brasil: a cordialidade, a mistura do público e do privado, já que essa advém desde a colonização. Além disso, deve-se pensar também, como contradição dessa suposta moralidade, a revolta de 1932, anterior ao crime, momento de pura luta política, entretanto, circundado por paixões, ideais, angústias.

Nota-se, portanto, a categoria  homem cordial, no processo da prisão: na importância da imprensa na construção do imaginário e sentimento popular e na pressão que essa fazia aos investigadores, o olhar possivelmente raivoso e racista da população ao ver um homem negro pedindo demissão para aproveitar as festividades, na contradição das investigações que, além de ignorarem possíveis pistas, ora alegavam pautar-se na ciência, como verdade absoluta, ora descarregavam discursos repletos de adjetivos depreciativos referindo-se a Arias.

Além disso, a cordialidade está, principalmente, presente no possível rumor da menina de traços orientais imaginária, que instiga a reflexão de que toda a suspeita, todo o processo investigativo estava enviesado. Um viés racista, que se utilizou da ciência para se justificar.

Mas, também pode-se pensar que a cordialidade está nos âmbitos que envolvem a soltura, nos discursos do advogado de defesa, carregados de expressões que apelam para o lado sentimental, e na própria decisão de aceitar o caso pensando apenas em interesses próprios, utilizando até o que Boris Fausto chama de racismo paradoxal, visto que pode ser lido como um fator que ajudou Arias.

A categoria de Buarque também se mostra na possível associação popular entre o jogador e Arias, que instigou a torcida no tribunal a torcer a favor do Arias de Oliveira, já que o futebol é um esporte marcado por essa euforia, excesso de sentimento, de impulsividade, de mistura entre público e privado. Além de ser o espaço em que, de certa forma, assim como o carnaval, o corpo negro está nesse centro descrito por Lélia Gonzales, controlado e estigmatizado, mas que pode ter ajudado na soltura de Arias.

Então, como já exposto, percebe-se a categoria homem cordial no que tange a prisão e a soltura do personagem Arias de Oliveira e, dessa forma, foi pensando nesse conceito e no âmbito da micro-história, que essa resenha foi estruturada[11], relatando o micro, para interpretar o macro e seus tipos ideais. Mas, para além da cordialidade, não se deve esquecer da estrutura racista que corroborou com a prisão e com a soltura de Arias, o "racismo paradoxal". Então, nesse emaranhado, de público e privado, sentimentalismo e impulsividade, que se identifica a ideia de homem cordial, apontado por Buarque, há também o racismo. Seria essa, então, uma cordialidade racista?

[1]Sociólogo pernambucano (1900-1987), autor de Casa Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos e entre outras obras.

[2]Como há um olhar exótico, uma animalização, não há empatia nas notícias, então coloca-se fotos do casamento e dos cadáveres.

[3]Segundo Boris Fausto, os grandes crimes seriam, "em poucas palavras, episódios semelhantes aos que hoje assim rotulamos, que se destacam pela exuberância sangrenta, por envolver paixões amorosas, pela importância dos protagonistas, ou tudo isso junto" (FAUSTO, 2009, p. 39).

[4]Este fator emocional, cordial, que está presente em toda a narrativa é o fio condutor de nosso ensaio e o exploraremos adiante, entendendo-o como impulsionador dos acontecimentos.

[5]Talvez bem sentimental.

[6]Historiador, sociólogo e escritor (1902-1982), autor de Raízes do Brasil, O homem cordial e entre outras obras.

[7]A polidez é separar o público do privado, "utilizar a máscara social". A polidez é antagônica à cordialidade.

[8]Racismo estrutural, segundo Silvio Almeida, trata-se de uma tecnologia que se manifesta em todos os âmbitos da sociedade, legitimando e moldando a desigualdade e violência (2019).

[9] Escritor e jornalista brasileiro (1866-1909).

[10]"Racismo Paradoxal".

[11]Até mesmo a linguagem que optamos foi pensada para relacionar-se com o conceito que nos propusemos a analisar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Euclides. Os sertões – campanha de Canudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil 1. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GONZALEZ, Lélia. "Racismo e sexismo na cultura brasileira". In: SILVA, L. A. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS, n. 2, p. 223-244, 1984.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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