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BRASIL(IA): ORDEM E PROGRESSO

GvCult - Uol

18/12/2020 07h42

Palácio do Planalto em construção, 1959

Por Yago Vasconcelos Falcão

  1. ORDEM, PROGRESSO E… BRASÍLIA

Ordem e Progresso são as palavras que a bandeira nacional carrega. Podem ser compreendidos como os valores e os ideais que o Brasil pretende alcançar. Pode-se dizer que os dois conceitos provenientes das palavras ordem e progresso serviram como base no imaginário de Brasília, no momento de sua proposta. A cidade levaria ao Centro-Oeste a modernidade e o progresso do Brasil litorâneo, porém de forma organizada e planejada de forma que evitasse os problemas vividos nas metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro (até então capital) e São Paulo, como congestionamentos de trânsito, falta de espaço para locomoção de pedestres e residências humildes sobrescrevendo a área em volta da cidade, problemas típicos de cidades que se desenvolveram de forma espontânea, sem um planejamento urbano prévio.

Brasília seria o coração do Brasil, o início de uma nova época para o Brasil, sob o lema de "Cinquenta anos em cinco", plano de ação do então governo do Juscelino Kubitschek para lançar o Brasil à uma nova era de modernidade, que incluiu em última hora a construção de Brasília como a 31ª meta[1]. A cidade seria um símbolo desse novo Brasil e conectaria as remotas regiões do interior do país ao resto do Brasil, com rodovias que sempre se ligariam à Brasília. Este símbolo seria tanto para questões internas, de ideal para outras cidades brasileiras, quanto externo, como a face do Brasil perante o mundo, sendo a concretização daquilo que o país possui como ideal, ordem e progresso.

Conforme explica o documentário "Brasília: planejamento urbano" (1964)[2], a cidade nasce de um gesto primário de quem assinala sua posse sobre a terra, cruzando-se dois eixos em ângulo reto, ou (conforme o referido documentário destaca) o próprio sinal da cruz, adaptando-se este à topografia local de forma que melhor se aproveite o espaço e os recursos naturais da região. Os eixos da cruz serviriam também para a localização, sendo possível localizar qualquer quadra, de forma ordenada, em Brasília, de acordo com sua localização pelos dois eixos que constituem a cidade (cada eixo possui uma extremidade e são o que hoje é conhecido por asa norte, sul, leste e oeste da cidade).

A capital do Brasil representa um modelo de ordem e progresso, pois se, por um lado, possui ordem em sua estruturação, com a separação de quadras e blocos organizados em áreas residenciais, comerciais e industriais, por outro representa uma ideia de progresso pelas suas avenidas pavimentadas, uma cidade feita para carros (indústria automobilística era símbolo de desenvolvimento no século XX, motivo pelo qual Vargas proibiu a importação de veículos e Kubitschek criou políticas de incentivo à indústria) e pelo próprio objetivo de desbravar o interior do Brasil, levando consigo o progresso vivenciado na metade do século XX.

É interessante notar que a cidade possui um modelo de construção e organização racionalizado, de forma que fosse uma cidade capaz de maximizar os recursos, seria uma metrópole desenvolvida a partir do modelo desenvolvimentista da época, com a criação de grandes avenidas e de uma cidade feita para transporte através de carros, incentivando assim o desenvolvimento de indústrias automobilísticas na região, as grandes quadras para os pedestres daria espaço a um ambiente para comércio, ao qual as pessoas poderiam transitar sem a necessidade de atravessar ruas/avenidas, o entretenimento, a educação e o próprio rito religioso, ficariam focadas em áreas escolhidas pelo governo, permitindo que houvesse um planejamento de onde cada setor (comercial, residencial, industrial) se localizaria. Além disso, a construção da cidade por si só já representou uma importante etapa para a construção civil, tendo diversas empresas até hoje conhecidas, participado da construção da cidade (inclusive as empresas de construção civil continuam exercendo grande influência em Brasília).[3]

  1. DESORDEM, SUBDESENVOLVIMENTO E… BRASÍLIA

Porém, como o documentário "Brasília, Contradições de uma Cidade Nova" (1967)[4] demonstra, Brasília apesar de seu planejamento e investimento, acaba por apresentar as mesmas contradições que o Brasil apresenta. Se por um lado, o plano piloto de Brasília é aquilo que se pretendia alcançar, com vastos espaços para circulação de pedestres, com avenidas que não congestionam e com comércio em partes planejadas, por outro as chamadas cidades satélites, representam a desigualdade, pobreza e descaso de um país que, embora tente aparentar ordem e progresso, negligencia suas camadas mais pobres e as deixa à mercê da desordem e em uma situação de subdesenvolvimento, representando exatamente o oposto daquilo que a capital pretendia ser em sua idealização.

Cabe notar que nem a ideia de Brasília, pautada na ordem e no progresso, nem seu resultado catastrófico em razão de conflitos sociais, ocorreram por acaso ou por acidente. Em um primeiro momento, no momento de idealização do conceito de Brasília, notamos a presença de um pensamento racionalizador e de eficiência que se pauta em uma maximização do espaço urbano com o intuito de permitir o desenvolvimento do comércio e da indústria em espaços escolhidos pelo governo brasileiro. Essa ideia de ordem e progresso e a existência de um pensamento racionalizador e eficiente, presentes nestas duas ideias são frutos daquilo que entendemos como o espírito do capitalismo e permitidas apenas por conta da organização racional assentada no trabalho (formalmente) livre, levando para Brasília diversos operários para sua construção que mais tarde viriam a ocupar as chamadas cidades satélites. Tais operários foram para Brasília procurando melhores condições de vida para si e para suas famílias, em uma ética muito semelhante à do protestantismo, na qual o indivíduo não precisa aguardar sua ida ao céu, mas pode buscar no próprio mundo material a graça de Deus.

  1. WEBER E… BRASÍLIA

Apenas pela obra "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" (1905)[5] de Weber, podemos notar quatro pontos que ajudam a explicar Brasília: 1. A ética protestante exerce papel fundamental como impulsor das vontades materiais, no sentido de que a graça de Deus pode ser buscada no próprio mundo material, razão pela qual diversos indivíduos e famílias se veem dispostas a saírem de suas casas em busca de uma promessa de vida melhor; 2. Esse impulso apenas se torna possível para a construção de Brasília em razão de uma forma de racionalização do trabalho que se baseia em um trabalho formalmente livre; 3. Brasília foi idealizada e embasada em ideias frutos de uma ideia racionalizadora e de eficiência, conceitos intrinsecamente ligados ao espírito capitalista; 4. Brasília assume a forma física daquilo que Weber denomina de moderno capitalismo racional pois dá-se espaço físico à um determinado sistema legal, com uma administração orientada por regras formais, tornando Brasília portanto a materialização do sistema legal e da administração nacional.

É interessante notar que a obra do autor pode ir além desta explicação da construção de Brasília e explicar a própria relação existente entre as classes sociais que marcam a diferença social de Brasília e de suas cidades satélites.[6] Isso por que os operários, embora insatisfeitos com suas moradias e o desejo de sair da cidade para outra, de alguma forma estão presos e ligados à seus empregadores, razão pela qual não apenas permanecem na cidade, mas a constroem, ainda que vivam em uma cidade satélite.

Nesse sentido, nota-se a existência de uma dominação tradicional onde o indivíduo permanece sobre a influência de seu empregador, a quem é dado um status de legitimidade e a quem se obedece. A mesma dominação também aparece nas relações familiares onde a família (leia-se mulher e filhos(as)) seguem a figura paterna para Brasília. Também parece que há uma dominação legal que exerce determinada coerção social nos indivíduos, que ainda que se sintam injustiçados, em momento algum aparentam desejo em suscitar alguma revolta contra o grupo dominante (sejam os empregadores ou políticos). Por fim, há também Brasília, em razão de seu conceito e propósito em ser capital e acolher políticos nacionais que são escolhidos pelo voto também é marcado por uma dominação carismática. Portanto, os três tipos de dominação descritos por Weber em sua obra sobre os três tipos puros de dominação legítima podem ser identificados em Brasília pelas seguintes relações: 1. Carismática: Relação dos políticos eleitos com a população local; 2. Legal: Relação estatal de controle às camadas mais humildes; 3. Tradicional: Relação empregador x empregado e operário x família.

  1. SIMMEL E… BRASÍLIA

Brasília também pode ser compreendida a partir da ótica proposta por Georg Simmel que trata de temas como indivíduo, metrópole e dinheiro na contemporaneidade. Brasília pode ser compreendida como uma tentativa de equilíbrio entre a vida urbana e a vida rural[7], mantendo aspectos do campo relativos à vida reflexiva e contemplativa, a partir de suas quadras destinadas a pedestres, livres de carros, em um estilo mais "calmo" do que aquele das grandes metrópoles, porém mantendo a estrutura de trabalho e comércio provenientes das grandes metrópoles.

A cidade representaria um equilíbrio entre a vida urbana e a rural, com grandes espaços para reflexão e contemplação, principalmente para crianças, que poderiam ir às escolas sem ter que sequer atravessar ruas movimentadas por carros, e com aspectos de mobilidade urbana e próprio trabalho (muito marcado pelo funcionalismo público) de uma metrópole. É interessante notar que até hoje Brasília apresenta essa dualidade, pois o centro de Brasília, onde estão os prédios públicos e o setor comercial possui aspecto de uma metrópole, enquanto que os setores residenciais (em especial a asa sul de Brasília, onde há residências de uma classe média alta) há uma sensação de isolamento e de interior/campo, que no entanto se contradiz totalmente às cidades satélites, conforme o próprio documentário acerca dos contrastes da cidade demonstra.

Além do aspecto da cidade, podemos observar a relação dos indivíduos a partir da perspectiva da relação dinheiro x indivíduo x liberdade, conforme Simmel descreve em sua obra "Dinheiro na cultura moderna" (1896)[8]. Conforme expõe o mesmo a personalidade torna-se autônoma, rompendo com laços tradicionais, porém se por um lado há rompimento dos laços tradicionais e, em consequência, aumento do círculo pessoal, as relações interpessoais tornam-se menos coesas e ao mesmo tempo que o dinheiro gera liberdade (razão pela qual há rompimento dos laços tradicionais), também gera dependência com o trabalho e empregador.

As relações urbanas da cidade de Brasília podem ser vistas a partir desta perspectiva. Conforme já apontado, quando se tratava da dominação tradicional, o indivíduo depende da subsistência provida da cidade, ainda que haja vontade de emigrar e revolta pela condição desigual a qual o indivíduo foi submetido, porém o dinheiro exerce influência sobre o indivíduo, que se vê dependente desse mesmo modo de vida ao qual deseja sair. Por outro lado, o restante da família, que segue o trabalhador (seja operário ou funcionário público) se vê presa em seus laços tradicionais exatamente porque não possui dinheiro, e por isso não é capaz de tornar a personalidade autônoma.

  1. FRACASSO E… BRASÍLIA

Weber e Simmel nos ajudam a compreender a construção de Brasília, seja em sua razão e motivo provenientes de um pensamento capitalista, seja pela organização da cidade através de um equilíbrio entre elementos da metrópole e do campo. Ambos os autores também nos ajudam a compreender as relações que permeiam Brasília, pela ótica da dominação e do dinheiro. Junto do documentário que mostra a cidade anos após sua inauguração, somos capazes de analisar tanto a construção quanto o resultado que origina Brasília de uma perspectiva crítica, compreendendo quais são as explicações que originaram a cidade e que, até hoje, a caracteriza.

Brasília deveria ser o símbolo do futuro, de um país que possui como ideais ordem e progresso, porém a cidade repete as contradições do resto do Brasil, dividindo-se em parte rica e pobre, mostradas pelo contraste entre plano piloto e cidades satélites, além de uma diferença dentro da própria cidade entre funcionalismo público, com funcionários de alto e baixo escalão. Sua construção levou em consideração aspectos arquitetônicos, porém parece ter se esquecido do lado humano, sem planejamento de como alocar os trabalhadores que para lá foram, e sem uma proposta de integração entre classes sociais tão distantes.

Para além do Planalto, Congresso, Senado, STF e ministérios, Brasília representa um fracasso, de cidade e de país, que tenta projetar para si mesmo e para o mundo a imagem de uma nação ordenada e progressista (no sentido de desenvolvida), porém que na realidade é marcada pela desordem e pelo subdesenvolvimento, incapaz de lidar com seus reais problemas, em especial a pobreza, optando por ignorar o problema e escondê-lo, enquanto se mantém uma falsa imagem de ordem e de progresso.

[1] CPDOC. Silva, Suely. O Brasil de JK > 50 anos em 5: o Plano de Metas. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Economia/PlanodeMetas. Acesso em: 30 de novembro de 2020.

[2] BRASÍLIA: Brasília: planejamento urbano. Brasil, 13min, 1964. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eH_5Tf7dXrk. Acesso em: 30 de novembro de 2020.

[3] BRASIL. Democracia em Vertigem [01:10:00 – 01:11:00].

[4] BRASÍLIA: Contradições de uma cidade nova. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Brasil, 22min , 1967. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3Ony7axA-CE. Acesso em: 30 de novembro de 2020.

[5] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo, 5ª edição. São Paulo, 1987.

[6] MAX, Weber. Os três tipos puros de dominação legítima. Cohn G, organizador. Weber: sociologia. São Paulo: Ática, p. 128-41, 1997.

[7] SIMMEL, G.; VELHO, O. G. A metrópole e a vida mental [The Metropolis and the mental life]. O fenômeno urbano, 1973.

[8] SIMMEL, Georg. O Dinheiro na Cultura Moderna in Simmel e a Modernidade. 1998.

 

Yago Vasconcelos Falcão é aluno do segundo período no curso de Ciências Sociais na FGV – CPDOC.

 

Edição Final: Guilherme Mazzeo

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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