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A narrativa da queda em "Cinzas do Norte", de Milton Hatoum

GVcult

06/11/2015 08h00

Por     Isis Belucci Gomes 

e      Sara Rodrigues de Lima Baptista

 

Cinzas do desmatamento da floresta amazônica. Fotografia: Rodrigo Baleia

É quando comunica suas experiências, dotando-as de significação, que o indivíduo reage à tentativa de apagamento da memória e de sua própria subjetividade. A ideia de Beatriz Sarlo, importante crítica literária do modernismo latino-americano, parece refletir de forma justa o sentido presente na narrativa de Cinzas do Norte e em sua afirmação perante determinado contexto sociocultural. Nesse caso, não se toma por "indivíduo" o autor, Milton Hatoum; o protagonista, Mundo; o narrador, Lavo.

Esse indivíduo é o sujeito de uma geração, filho de um lugar e de uma época, mas que não se resume em sua localização espaço-temporal. Ele é o ator não-úno que testemunha uma certa condição humana com tendências à universalização, porque se não o fizesse talvez essa condição não seria lembrada como deveria – e assim, com ela, parte significativa da humanidade deixaria de existir.

Milton Hatoum, escritor amazonense consagrado no fim dos anos 90, é o responsável pelo romance de testemunho geracional. Descendente de libaneses instalados em Manaus e nascido na década anterior ao golpe que deu início à mais longa ditadura brasileira, ele cresceu numa cidade mestiça e sua formação ocorreu em um tempo em que as relações sociais pareciam se esgarçar. Apesar de sua vasta formação intelectual, adentrou o mercado literário apenas aos 37 anos, com a publicação de Relatos de um Certo Oriente, se reafirmando como escritor quando da publicação de Dois Irmãos (mais de dez anos depois de seu primeiro romance) e de Cinzas do Norte, em 2005, ano em que também foi vencedor do prêmio Jabuti. Em suma, Hatoum viveu a experiência autoral formal na maturidade.

As implicações dessa entrada relativamente tardia no circuito se refletem em seus pressupostos de escrita: é preciso se distanciar do passado e amadurecer a memória dele, para que a imaginação se expresse e esse possa servir à literatura. Em decorrência, se, por um lado, a obra se enquadra de maneira emblemática na classificação benjaminiana de romance moderno, centrado nos dilemas individuais e na transmissão de uma subjetividade que se pretende universal, por outro, traz consigo uma preocupação de apego a certos critérios formais que impedem que a obra se flexibilize muito e seja descentrada social e historicamente, interferindo no sentido do que é transmitido.

Suas personagens são representativas desse uso do subjetivo universal para reverenciar uma situação específica do ser humano em uma dada sociedade, a manauense dos anos 1950 e 1960 principalmente, no caso. Raimundo, ou só Mundo, seu protagonista – cujo nome por si só sugere uma amplidão que não nos permite interpretá-lo como somente alguém de uma certa história – é um menino de família rica, de ímpeto artístico, com uma relação difícil com aquele que é dado como seu pai, Trajano – Jano.

As particularidades desse conflito remetem às posições que as duas personagens assumem no contexto político da ditadura: Jano, empresário associado à ordem social e à prosperidade econômica, tem íntimas ligações com dirigentes militares locais; Mundo, por sua vez, repudia qualquer forma de associação com o regime, que representa a ausência de liberdade e, portanto, de realização humana. O protagonista encontra-se triplamente oprimido: por seu pai, pelo lugar onde vive, pela política de seu país.

A história de Mundo é determinada ainda por outros dois fortes vetores: sua relação com Ranulfo, homem de espírito livre, sem compromissos e formalidades sociais – o inveterado vagabundo, julgado como o verdadeiro pai do protagonista, que o ampara ao longo de toda a narrativa, sendo parte essencial da narração sutil em forma de cartas a Mundo – e com Arana, artista local estabelecido, de verve e inclinações duvidosas, que o fazem ser caracterizado como o impostor, mas que oscila numa relação de aproximação e afastamento metre-aprendiz com Mundo.

São esses os pontos que movem o enredo, contado em sua maior parte por Olavo, ou só Lavo, o amigo fraterno do protagonista, de origem humilde e condições familiares e sociais que servem quase como um contraponto à vida de Mundo. Se ele é inclinado para o conflito, para a instabilidade, Lavo é o ponto de segurança, aquele que busca estabilidade – se forma advogado resignado às práticas protocolares da profissão –  e se conforma com o entorno sociopolítico em que vive.

Existem outras figuras ainda que simbolizam a tensão narrativa entre constância e inconstância. Ao primeiro polo, além de Lavo, Jano e Arana, pertence também Ramira, tia que cria Lavo, simbolizando as classes pobres que vivem (condenadas ou não) muito em órbita ao redor das dinâmicas das classes dirigentes. Localizada na outra ponta, junto com Mundo e Ranulfo, está Alícia, mãe da personagem principal, quem motiva direta ou indiretamente grande parte da história por sua inconformidade com as imposições de seu lugar de origem, humilde e incerto, e com os compromissos sociais assumidos na condição de mulher da elite provinciana.

É nesse quadro que se expressam os anseios e as inquietações de uma geração, encurralada entre a tirania e a liberdade, a formalidade e o rompimento com convenções sociais. A forma como esses paradigmas afetam de maneira diversa tipos sociais e classes diferentes permite que Cinzas não se resuma a um romance de introspecção, mas tampouco perca sua capacidade de comunicar universalmente a experiência. Um exemplo basilar disso é o fato de Mundo ser colocado num colégio militar por seu pai – a necessidade de discipliná-lo recorrendo a tal formato se dá devido à postura rebelde do indivíduo e também à sua posição social como filho de um homem da elite, associado ao regime, de forma que essas condições não são suficientes se não combinadas para gerar o fato narrativo.

Um traço de verdadeiro destaque na obra de Hatoum é seu fluxo narrativo, que em Cinzas do Norte apresenta particularidades sutis. De início, temos uma breve introdução dada por Lavo do que o levou a registrar suas reminiscências, dando de partida trechos da última carta de Mundo. Vinte anos depois, com uma carreira consolidada no Direito e já fora da clausura geográfica de Manaus, Lavo se coloca como o narrador-testemunha da história dos Mattoso – e de suas relações com outros elementos da história.

Essa especificidade faz do narrador o contador da história e parte da mesma, não obstante durante a trama a personagem de Lavo não se posicionar claramente a um lado do conflito central, entre Mundo e Jano. A escolha pela data do início do relato também é relevante: o contexto da abertura política e redemocratização (década de 1980). A abertura aparece como um sopro de libertação, como se fosse necessário tirar o pó das mazelas passadas provocadas pela tirania. Só com a abertura que Lavo sente poder rememorar sua participação na vida dos Mattoso, muitas vezes inerte, mas sempre presente.

Outra marca é a presença de múltiplos narradores (com diferentes pontos de vista) e da construção metalinguística do romance. A metalinguagem mora no fato de que Lavo constrói sua história através de um livro (fazendo de Cinzas do Norte um "livro sobre um livro") é interessante ressaltar também que o desenvolvimento da trama se dá por um híbrido de memória e documentação, evitando que o narrador possa ser visto como tendencioso; já os múltiplos narradores aparecem nas falas de Mundo, Ranulfo e Lavo.

A perspectiva de Mundo é apresentada ao leitor através de cartas e telegramas que troca com seu amigo Lavo. Já o relato de Ranulfo é diluído dentro do livro, com pedaços da carta dele para Mundo, contando a história dele com a mãe do protagonista, Alícia. O restante fica a cargo de Lavo, que através da observação e memória costura os laços entre os personagens e as ações que os levam à ruína (de suas relações e deles mesmos). A construção estilística coloca em perspectiva o papel de Lavo na história, de espectador atento, presente, mas submisso, apartidário. É a presença de três vozes que colabora com maestria na verossimilhança da obra.

Tendo em vista a construção da narrativa, pode-se dizer que o romance funciona como a história moral de uma geração (romance geracional), uma vez que apresenta uma tentativa de registrar e entender o passado, seja em caráter psicológico ou historiográfico. Em entrevista[1], Milton Hatoum faz alusão à proximidade de sua obra com a Educação Sentimental, de Flaubert. As duas obras trazem para um microcosmo os efeitos que um tempo histórico e social traziam para as pessoas. Cinzas do Norte denota como uma sociedade, travestida em tipos, lidava com um momento grande da história recente brasileira. O crítico Walter Benjamin aponta, em seu excerto intitulado "O Narrador", que existem dois tipos de atores narrativos:

"Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tra- [fim da p. 198] dições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas características próprias." (BENJAMIN, 1994).

No romance analisado, também se encontram esses dois tipos de narrador (mesmo que suas posições sejam por vezes mais psicológicas que propriamente físicas): a ânsia de ir embora para o mundo e explorar novos lugares e a estagnação observadora de quem não quer sair da província (narrador marinheiro e narrador camponês). Mundo, assim como seu apelido, é apresentado como expansivo e explorador. Quer sair de Manaus e ir para o Rio de Janeiro, onde acredita ter maior potencial artístico. Sua ida para a Europa também faz com que sua visão seja maior, usando a saída de Manaus como um grito de libertação de seu opressor.

É possível ver também seu profundo interesse por arte como uma "terra a ser descoberta", algo que exige interpretações externas, fora do senso comum. Apesar disso, a liberdade não vem com sua saída de Manaus, por isso não é expressa na em suas vozes. Já Lavo, o narrador fixo, não externaliza a vontade de conhecer do lado de fora (seja geograficamente ou o campo artístico) mas denota grande conhecimento do que ocorre em sua cidade, especialmente dentro da vida de seus tios e dos Mattoso. Tudo torna-se interessante e a necessidade é de que as histórias se entrelacem, formando um cenário maior e claro.

Em primazia, o romance já começa em "cinzas": é da remissão que surge o relato, e seu desenvolvimento caminha devagar, para levar a quem lê à melancolia no processo da queda de cada um dos personagens. O tempo de narração auxilia a compreender a gradativa deterioração dos personagens e como cada um deles foi se destruindo, em si mesmos e entre os seus.

O caráter pessimista da história é forte, muito presente em sentimentos de frustração generalizados: representa um ideal de libertação (pessoal e político) que não é alcançado, apesar de ter sido muito batalhado. Muito desse caráter de compreensão e tentativa de quebra do status quo é visto na arte produzida por Mundo. Sua primeira fase é recheada de sátiras políticas, que contestam o sistema e a privação do que é livre; a maturidade traz a experimentação e com ela cresce o derrotismo, culminando na obra prima de Mundo: as cruzes na Vila Amazônia. Ali jaziam as esperanças de progresso externo e recuperação interna de cada um dos personagens. Serenamente, os personagens se despedaçam e a cada página as ações caem por terra. Até só sobrar pó.

Edição     Filipe Dal'Bó

[1] Entrevista concedida a Julio Daio Borges, em 2006. Disponível em <http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=1&titulo=Milton_Hatoum>

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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