“O que lembro, tenho.” (Grande Sertão Veredas, João Guimarães Rosa).
Ana Vidal
17/10/2015 12h08
Por Marcelo Marques
Henry Nekrycz foi um sobrevivente. Sobrevivente da maior tragédia que perpassou a humanidade no século XX, infundindo a barbárie no coração da civilização, e, transformando a tragédia e o horror em signos que marcariam para sempre a contemporaneidade. O ouvir de seu testemunho e a rememoração dessa tragédia foi possível ao discentes, docentes e funcionários da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo em evento organizado pela entidade estudantil GV Cult, em 2014, visando relembrar os setenta anos da tomada e da libertação das vítimas do campo de extermínio de Auschwitz, pelo exército soviético. O Holocausto foi o fenômeno de assassinatos em massa de povos e de suas identidades, perpetrado em pleno século XX, por uma nação europeia e branca, berço de boa parte da alta cultura e intelligentsia do Ocidente, que evidenciou per se o fracasso da Modernidade e de sua pretensa civilização. Na definição de Zygmunt Bauman[1] um subproduto do impulso moderno em direção a um mundo totalmente planejado e controlado, ocorrendo que uma vez que tal impulso deixe de ser contido e corra à solta, ele consubstancia-se em terror.
Ben Abraham[2], pseudônimo adotado por Henry, judeu, filho de Abraham e Ida, nasceu na cidade de Lodz, na Polônia, em 1924. Lodz também é a cidade natal de um dos maiores pianistas do século XX, Arthur Rubinstein, também ele judeu. Fora durante todo século XIX um importante centro fabril, especializado na produção têxtil e como uma grande comunidade judaica que se formava ali desde do século anterior. Era também a presença de um operariado bastante organizado e que produziriam protestos e agitações ao longo de todo o período entre guerras. O censo polonês de 1931 identificava uma população total de seiscentos e cinco mil habitantes de maneira que a comunidade judaica somava quase um terço da mesma, cerca de 32% desses indivíduos. Com a invasão da Polônia em 1939, sinal primeiro da desumanidade e dos ventos catastróficos que soprariam sobre o velho o mundo, a cidade é tomada pelo exército alemão. Ali os alemães organizariam o segundo maior ghetto da Europa em que a população judaica de Lodz, bem como ciganos, e, logo de outros territórios ocupados, seria encarcerada, barbaramente vigiada e torturada, punida sem haver cometido crime algum, vilipendiada física e moralmente por vilões, condenada aos mais desumanos trabalhos e cruéis desígnios.
Muitos dos indivíduos que ali forçosamente se congregavam ali pereceram, ou, ainda pereceriam, em outros campos de concentração e de extermínio espalhadas pela Europa. Das mais de duzentas mil pessoas enclausuradas no ghetto de Lodz, somente oitocentas seriam libertas pelo exército vermelho, sendo, portanto, o último ghetto a ser liquidado pelos exércitos aliados. Da população judaica de Lodz sobreviveriam apenas dez mil indivíduos[3]. Abraham morreria no ghetto de Lodz e Ida padeceria em Auschwitz-Birkenau. Ben, migrando de campo em campo no ritmo ditado pela marcha da morte, só reencontraria a esperança da liberdade om chegada dos tanques norte-americanos em maio de 1945, no campo de Ludwiglust. Nesse interregno havia sido privado de sua identidade, de sua história, de sua nacionalidade, de seus pais e do restante de sua família, de sua própria condição humana. E para que tais atrocidades nunca mais se repetissem, decidiu que seu testemunho serviria ao mundo como um alerta sobre o passado a ser conhecido e como anteparo de trajetos que deveriam ser abandonados e evitados a todo custo no futuro.
O sistema totalitário promoveu a inversão dos valores e parâmetros, estendo-os a toda sociedade em que se alojaram; o mal não se coloca fora do sistema, nem este do mal. Há uma relação intrínseca entre o mal e o sistema social moderno, onde ocorre a banalização do mal esculpida por Hannah Arendt[4]; a banalidade implica na não existência de uma dicotomia entre o mal e o sistema, entre o lado voluntário e consciente da ação e o seu lado involuntário e inconsciente; a violência do sistema não exime de responsabilidade os seus executores, isto é, os indivíduos que optaram pela entrega de si à voz uivante dos demagogos e aos desígnios perversos das engrenagens estatais e da subserviência a loucura do líder do momento. A consciência moral esteve, destarte, liquidada no fascismo e foi substituída pela contribuição ao aparelho. Isto é, a dominação fora tornada tão poderosa que o indivíduo só pode submeter-se cegamente. Essa submissão, ou adaptação dócil, torna-se para o indivíduo massificado mais racional que a própria razão, cerceando a raiz mais profunda da Modernidade, a saber, o signo do homem como indivíduo autônomo e esclarecido, emancipado, portador da razão. A dialética do esclarecimento, como tangencia Theodor Adorno[5], é transformada em loucura.
Deste modo os regimes ilegais, se utilizaram e ainda se utilizam da supressão de vestígios, como já havia sido feito por outros no passado, transpassando a queima de capital simbólico e a destruição de signos culturais, mas, também de cadáveres, de cidadãos preteridos e colocados fora da lei e fora da humanidade, tentando esconder, omitir o que estava acontecendo, apagando a história e construindo um futuro falso e terrível. A lembrança, a informação e o acesso ao passado são formas de resistência aos totalitarismos e devem ser tomadas por estandartes por aqueles que desejam um processo de maior democratização nas democracias contemporâneas. O ato de compartilhamento das memórias constrói laços entre os indivíduos, por isso a importância histórica do testemunho e da voz de Ben, de seu trabalho como historiador e como jornalista. Ao partilhamos da rememoração de tais narrativas dolorosas, nos tornamos testemunhas, já que ao ouvi-las criamos empatia com os interlocutores e com os temas, levamos conosco tais importantes relatos, símbolos, que agem como ferramentas morais no sentido de provocarem sensibilização e ativismo, ações na esfera pública e atos de conduta individual, que versam em impedir ações violentas e ilegais, no presente ou no futuro, sejam outros genocídios, violações dos direitos humanos em algum outro grau ou ainda alguma imposição de medidas autoritárias, ou, não democráticas. E, assim, rememoramos uma frase repetida sempre por Ben: "É preciso aprender a história do passado para viver no presente e enfrentar o futuro com cabeça erguida".
O passado pode ser utilizado de diversas maneiras e com diversos propósitos. O que deve ser buscado é a compreensão do ocorrido, não no sentido de compreender para perdoar, mas, no sentido de compreender para poder julgar. Aleida Assmann, em conferência "Memória Comunicativa e Cultural" no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), em 2013, atentou para o fato de que a construção de uma memória cultural, coletiva, deve funcionar não como um elemento de adoração patológico do passado, todavia, como um elemento de possibilidade de crítica e de espelhamento, relendo e retraduzindo a realidade, necessária para que a mesma sociedade não incorra nos erros do passado e construa seu futuro lastreado na ideia de multiplicidade. É possível referenciar, por fim, ao poeta Octavio Paz e ao seu conceito de outridade. A outridade implica no surgimento do outro dentro do eu, da possibilidade de sentir tudo de todas as maneiras, de ver e compreender outras histórias, da construção de um discurso que comporte várias vozes e vários sujeitos, reconciliando o ontem, o hoje e o amanhã.
O que desejamos enfatizar com esse artigo além de saudar e honrar a memória de Ben Abraham, e, através dele todos aqueles que resistiram, mesmo padecendo e também aos que sobreviveram, consiste na utilização e na valorização da memória como um instrumento para analisar o contemporâneo, a partir dos objetivos do presente, resgatando a voz do oprimido e do outro, nos servindo como mecanismos para alertar e evitar a repetição do passado, impedindo nefastos acontecimentos futuros. A frase de Tzvetan Todorov[6] em "Memória do Mal Tentação do Bem" ainda parece luzir de sentido e precisão: "o melhor meio de combater os campos é informar o mundo sobre sua existência". O meio de impedir que novos holocaustos sejam realizados consiste no fortalecimento da democracia e de suas instituições, garantidores da liberdade e da possibilidade de autonomia, além de tornar conscientes e participativos a totalidade de atores sociais da comunidade política, incensando e cultivando as diferenças, impedindo que o Estado concentre forças totais e apoio irrestrito, sem nenhum contrabalanço ou oposição. A compaixão, a justiça e a dignidade serão sempre levadas em conta, enquanto levarmos conosco barbaridades como essa, que nos alertem quanto aos erros já cometidos. A humanidade e a condição humana ainda correm perigo.
[1] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
[2] Outras informações biográficas de Ben Abraham podem ser encontradas no sítio: http://benabraham.org/pt-br/; visitado em outubro de 2015.
[3] Tais dados aqui elencados e outros estão disponíveis na versão online da Holocaust Encyclopedia: http://www.ushmm.org/learn/holocaust-encyclopedia; visitada em outubro de 2015.
[4] ARENDT, Hannah. EICHMANN EM JERUSALÉM – Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
[5] ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
[6] TODOROV, Tzvetan. Memória do Mal Tentação do Bem. São Paulo: Editora Arx, 2002.
Edição Ana Vidal
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.