Milton Hatoum: a floração de um escritor maduro
GvCult - Uol
03/01/2023 05h00
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Nascido em Manaus, no ano de 1952, Milton Hatoum é hoje um escritor multipremiado e um reconhecido expoente da literatura brasileira contemporânea. Descendente de libaneses, tem uma trajetória peregrina: depois da infância e adolescência manauara, deixou aos quinze anos a capital amazonense para viver em Brasília, em 1967. O Distrito Federal dos idos de 1960 já podia ser considerado novo e velho ao mesmo tempo, uma vez que o projeto arquitetônico utópico-visionário de Oscar Niemayer e Lúcio Costa já coexistia com suas mazelas sociais, precocemente profundas e excludentes, e com o impacto do arbítrio do golpe militar desfechado em 1964.
Após três anos de vivência em Brasília, na idade de prestar vestibular, Milton transfere-se para São Paulo, a fim de cursar arquitetura na Universidade de São Paulo (FAU-USP), período em que participou do movimento estudantil e das agitações universitárias contra a ditadura militar.
A peregrinação continua como uma marca durante as décadas de 1970 e 1980, quando embarca para a Europa, estabelecendo-se primeiro na Espanha, graças a uma bolsa de estudos que lhe possibilita viver na capital catalã, Barcelona, e na capital espanhola, Madrid. Da península ibérica ruma para a França, onde fixa residência por três anos na capital francesa e faz seu mestrado em literatura comparada na Sorbonne. Em meados dos anos 1980, quando o Brasil põe termo aos 21 anos de ditadura e restabelece sua vida institucional democrática, Milton regressa à sua cidade natal, Manaus. Radica-se durante 15 anos como professor de literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), sentindo o alcance devastador da degradação da floresta pelo projeto ditatorial da Zona Franca de Manaus, da rodovia Transamazônica e de outras ações com efeitos perversos e deletérios, que experiencia também na condição de engenheiro-arquiteto, desiludido com os projetos urbanísticos e habitacionais para a cidade.
Nesse ínterim, ainda nos idos da década de 1990, vincula-se como professor visitante na Universidade de Berkeley, na Califórnia.
No decorrer desse tempo de formação e de maturação, entre a vida de pesquisador e a docência, produz uma série de manuscritos, com investidas ficcionais, em meio a tentativas e idas e vindas de escrita que remontam à vivência na Europa, com uma narrativa romanesca à procura de uma forma. Seu primeiro romance afinal desponta em 1989, com a obra-prima Relato de um certo Oriente, capaz de surpreender a crítica e de fisgar uma geração de leitores no país. Nas peripécias do enredo, mulher regressa à capital do Amazonas, cidade de sua infância, após ter passado vinte anos fora. A narradora chega na noite que antecede a morte de sua mãe adotiva, sendo que a recém-chegada estivera antes em uma clínica de repouso em São Paulo. Na volta ao passado perdido, a reconstituição da identidade passa pela descoberta dos segredos da família e, em particular, pela vida e personalidade da matriarca Emilie, por meio de relatos de outras vozes e de outros personagens tão familiares quanto estranhos, que se multiplicam no decorrer dos oito capítulos.
A floração de um escritor maduro, por assim dizer, que estreia com 37 anos de idade, não se faz seguir pelo fácil arroubo do sucesso com os prêmios e as traduções conquistados. Distam onze anos entre sua primeira ficção e Dois irmãos, com novas tentativas de escrita que acabam por ser descartadas, após interlocuções com seu editor, Luiz Schwarz. Seu segundo livro, lançado no ano de 2000, outra proeza literária, conta a história de irmãos gêmeos – Yakub e Omar –, inimigos íntimos, e suas relações familiares com a mãe, o pai e a irmã. A casa da família tem ainda por protagonistas a empregada de origem indígena – Domingas – e seu filho, Nael, que, no decorrer dos doze capítulos, se revela o principal narrador da trama.
É esse menino bastardo que, trinta anos depois, rememora suas histórias em busca da identidade paterna, indefinida entre os arquétipos masculinos da casa. Nesta reconstituição, testemunha cenas de um passado marcado por ódios, vinganças, incestos e atos que advêm dos excessos das paixões.
Para apreender o significado de Dois irmãos, podemo-nos fiar nas palavras de Wander Melo Miranda, professor titular de Teoria da Literatura na UFMG:
"…Milton retoma o mito dos irmãos inimigos para narrar a história de uma família de imigrantes libaneses em Manaus. À maneira de Relato de um certo Oriente, o autor dedica-se a recompor vozes silenciadas, gestos apenas esboçados, objetos em vias do desaparecimento ou perdidos para sempre. Instaura formas de identificação marcadas por pequenos eventos do cotidiano e pelo recurso à reminiscência – horizonte 'aquático, brumoso e ensolarado' da escrita."
"A condição de filho bastardo do narrador é uma forma oblíqua de tratar os conflitos familiares e culturais sem reduzi-los ao exotismo de posições preconcebidas. Assume a busca da origem como uma falta que não se consegue sanar, a não ser pela invenção ficcional que se revela por movimentos quase imperceptíveis de passagem do factual ao mítico, como variante textual de um processo mais geral de confronto de identidades."
Cinco anos depois de Dois irmãos, em 2005, vem a lume Cinzas do Norte, saga com vinte capítulos e mais de 300 páginas que narra a trajetória de Raimundo, filho de família nobre, através dos olhos de Olavo, amigo de escola, menino pobre, órfão criado pelos tios. A inclinação pelas artes leva ao conflito de Raimundo com o pai industrial, fazendo-o abandonar a Manaus dos anos 1960. Ambientado no período da ditadura militar, o romance tem no revoltado Mundo sua personagem central. Este parte para viver experiências em grandes cidades europeias dos efervescentes anos 1970. Ódio, traição, orfandade, paternidade e a busca por um sentido para a vida são temas que voltam a ser tratados neste enredo. Embora à primeira vista a moldura histórica da ditadura em Cinzas do Norte se apresente como pano de fundo contextual, a socióloga Vera Ceccarelo, em artigo de 2012, defende que a aparição do período militar é:
mais do que referencial, é estrutural e tem uma relação profunda com a forma como os romances são construídos e, consequentemente, com os rumos tomados pela história e pelos personagens. Através de um olhar sobre os microcosmos familiares, Milton Hatoum possibilita uma visão mais ampla do contexto de desenvolvimento da sociedade brasileira e como as relações sociais se configuraram diante de um período de repressão e violência.
Após a exploração da veia romanesca em uma sequência de três livros, a escrita de Milton se esparge por outros gêneros narrativos: em 2008, lança a novela Órfãos do Eldorado, uma encomenda editorial, que sete anos mais tarde é adaptada ao cinema. Um ano depois, em 2009, surge o volume de contos A cidade ilhada, seguido em 2013 pela reunião de crônicas Um solitário à espreita. Enquanto isso, seu romance Dois irmãos colhe os louros do reconhecimento e ganha vida sob a forma de outras linguagens e esferas artísticas, com transposição ao teatro, aos quadrinhos e à televisão, na minissérie dirigida pelo diretor Luiz Fernando de Carvalho.
Nos últimos cinco anos, vem a público seu projeto de retorno ao romance, por meio de uma trilogia com o título geral de "O lugar mais sombrio", cujo primeiro volume intitula-se "A noite da espera" e o segundo, "Pontos de fuga". O protagonista principal, Martim, alter-ego do escritor, conduz a narrativa evocativa, com os ecos autobiográficos dos anos de formação estudantil e universitária durante a ditadura militar, tendo por foco a sua vivência nas cidades de Brasília e São Paulo.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.