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Dois perdidos: um micro-conto

GvCult - Uol

01/11/2022 05h33

Por Bernardo Buarque de Hollanda

O relógio público marcava três e quarenta e cinco da madrugada. O rapaz, bêbado em demasia, andava tropego, em direção ao abrigo iluminado do ponto de ônibus, único floco de luz na plenitude da noite. A garota que ele conhecera na mesma noite, de cujo nome não mais se lembrava, acompanhava-o na caminhada e cambaleante. A moça, depois do flerte com o rapaz com quem 'ficara' no início da noite, permanecia sóbria e, àquela altura, sentia pena e agia mais por compadecimento que por atração do recém-conhecido.

Com o efeito da bebida, o rapaz mal conseguia se aperceber da presença da moça, tampouco podia atinar para o constrangimento da situação. Sentia-se estranho, pois mesmo sem ter controle sobre si, permanecia sério e pensativo, ensimesmado. Era a primeira vez que havia experimentado bebida alcoólica, passara do ponto de primeira e não estava lidando bem com aquela tontura. O estranhamento, longe de o alhear da realidade, produzia certas sensações desconhecias e era não sem prazer que as sentia.

A companheira, do alto de sua compaixão, ofereceu-se para levá-lo de volta a casa, quando observou que o ônibus Lapa-Leblon 464 se aproximava. Confusa, sem que conseguisse entender que ele aceitava a ajuda, tomou por bem fazê-lo. Depois de um certo esforço para galgar o alto degrau do transporte coletivo, que vinha vazio, o rapaz subiu, passou a catraca facilitada pelo cobrador e sentou-se lado a lado no banco com a recém-conhecida, que fazia sua boa ação noturna.

Com as ruas franqueadas pela madrugada silente, passaram-se apenas quinze minutos para encontrarem o destino e descer do veículo. Sustendo-se nos ombros da moça, andavam pelo relento da calçada rumo ao prédio em que morava o rapaz. No meio do caminho, nova situação constrangedora: com a bexiga apertada, sem mais conseguir esperar, a moça reparou que o rapaz tentava com os dedos abrir o zíper da calça para fazer xixi contra a mureta da rua. No estado em que se encontrava, foi tarde: quando deu por conta o moço tinha a roupa molhada, com halos umedecidos pela urina.

Assaz envergonhado, pediu desculpas à furtiva e solidária companheira. De repente, outra situação inopinada aconteceu: em meio à recaída com seu estado, apercebendo-se do vexame, o jovem desatou a chorar, copiosamente. A moça, um tanto aturdida, abraçou-o forte. Ante a melancolia do rapaz, compadeceu-se a ponto de cair em prantos também. o casal abraçado recostou-se sobre o banco esverdeado mais próximo da rua. O choro em duo prolongou-se por um longo tempo até estancar.

Quando os raios de sol despontaram e os primeiros transeuntes começaram a passar, os dois adolescentes foram vistos a dormir naquele mesmo banco. Estavam em sono profundo, inconscientes da exposição pública e da sensação de desamparo em que se encontravam. Provavelmente, para os observadores que passavam, não se tratava de moradores de rua, mas aqueles dois jovens de classe média sugeriam um vazio existencial que remetia ao abandono e à infância.

O rapaz bêbado deixou aflorar seu ser-criança desde que a urina lhe escapou e o choro se apossou dele. Por extensão, a moça, sóbria, mas identificada com aquele estado, sentiu compaixão pelo moço, logo transformando-se em dó de si própria, vertendo um choro compulsivo, a lacrimejar com intensidade, feito rio caudaloso. O sol fê-los acordarem. Recobraram os sentidos, buscando entender se tinham sonhado, onde estavam, o que havia acontecido. Em meio ao burburinho da cidade que amanhecia, com transeuntes indiferentes a ir e vir, abraçados estavam o moço e a moça, e abraçados ficaram sobre o banco da rua.

 

Edição Final: Guilherme Mazzeo

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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