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Em Cuba, há 30 anos: uma viagem de juventude

GvCult - Uol

07/06/2022 08h20

Havana, a capital de Cuba. Foto: Bruno Barreto /

Por Bernardo Buarque de Hollanda

 Em janeiro de 1992, durante um dos momentos mais críticos da vida cubana, com a falta de abastecimento generalizado e a crise de gêneros alimentícios no país, decorrência dos embargos políticos e da derrocada do apoio soviético em fins dos anos 1980, embarquei como voluntário para Cuba. Tratava-se de uma Brigada de Solidariedade à ilha socialista caribenha. Havia, em realidade, dois grupos de brasileiros solidários: o dos intelectuais e o dos jovens. O primeiro tinha à frente Frei Betto, Chico Buarque, Ziraldo e outros nomes da comitiva que tomavam parte no ato solidário. O segundo grupo, de que participei, era composto por jovens estudantes secundaristas e universitários dispostos a trabalhar durante três semanas em campos de plantação no interior do país.

Eu tinha então dezessete anos, fizera os exames vestibulares para o curso de Ciências Sociais nas universidades do Rio de Janeiro (UFRJ, UERJ, UFF e PUC-Rio) e tomei parte na caravana. A mobilização acontecera desde os meses anteriores e, no estado do Rio, a prefeitura de Niterói, por meio do seu prefeito Jorge Roberto Silveira, exibia cartazes que divulgavam o projeto "Médico de Família", inspirado no modelo cubano, e espalhava outdoors nas ruas em referência àquele controvertido país do Caribe.

Embarquei junto a uma delegação de oitenta brasileiros, a grande maioria militantes de partidos políticos, metade dos quais ativistas do MR-8, grupo revolucionário remanescente da luta contra a ditadura civil-militar no Brasil. Estes somavam-se a integrantes das juventudes socialistas de partidos como PT, PDT, PCdoB, entre outros de que não mais me recordo.

Conhecer Cuba foi por suposto uma experiência distinta das viagens tradicionais de turismo que fizera antes, na condição de filho de família de classe média, que estudara em escolas privadas e que crescera na zona sul do Rio. Ainda que a cidade de Havana tenha suas belas praias, seus monumentos e suas atrações turísticas, e que tenhamos tido quatro dias para passeios, incluindo visitas guiadas a escolas, museus e hospitais, não era esse o foco principal de nossa ida.

Desde a saída do Rio de Janeiro, passando por escala em Caracas na ida e na volta, a expectativa das dezenas de brigadistas era enorme. Quando da aterrissagem na capital cubana, já madrugada adentro, o cansaço não impediu a euforia coletiva de jovens que cantavam e balançavam bandeiras de partidos, sindicatos e entidades associativas. A recepção oficial cubana também foi muito calorosa. Chamava a atenção a simpatia, quase veneração para com os brasileiros, de que conheciam suas telenovelas, sua música popular e seu futebol.

No primeiro dia ficamos albergados na capital Havana, com hospedagem na escola da União da Juventude Comunista, ladeada pela área olímpica, onde os Jogos Panamericanos de 1991 haviam sido realizados. A direção da UJC foi a responsável pelo recebimento e pelas boas-vindas aos brasileiros. No dia seguinte, após o café da manhã, tivemos um encontro com o primeiro secretário da entidade, Roberto Robainas, que pautou uma discussão em torno da situação do país. Tratou de temas sensíveis, como o bloqueio econômico ao país, imposto pelos EUA, a existência do partido único em Cuba e o crescimento da prostituição, em virtude da deterioração das condições econômicas causadas pelo embargo estadunidense.

Um dia depois, após uma visita geral à capital, passeando nos "guaguás" – nome dos ônibus locais, com formato sanfonado, parecido com veículos existentes na cidade de São Paulo –, rumamos para o acampamento "El Paraíso", distante a quarenta minutos de Havana, na província de Güines. Durante o breve deslocamento, ficou-se com a sensação de um país então eminentemente rural, esteado na agricultura e na produção de bens primários de exportação, em especial a cana-de-açúcar. Nas estradas do interior, por onde se passava, cartazes anti-imperialistas e propagandas de incentivo à luta nacional procuravam incutir esperança na superação da aguda crise então vivenciada.

No acampamento, dividido em dois pavilhões, um para homens e outro para mulheres, que se acomodavam em um corredor de beliches, ficamos um total de dezessete dias trabalhando e nos divertindo diuturnamente com os camponeses cubanos. Esse período deu oportunidade para que conversássemos e sentíssemos da população local suas impressões a respeito da vida no país. À medida que os dias passavam, ganhava-se mais confiança e as conversas tornavam-se mais espontâneas e francas. Eram notórias as afinidades entre brasileiros e cubanos, e os laços se estabeleciam não só nos dias de trabalho, mas especialmente nas noites dançantes, para onde íamos em espaços das redondezas.

Passadas as mais de duas semanas, a temporada intensa em "El Paraíso" já havia permitido selar muitas amizades de parte a parte. Era uma época de correspondência por cartas, mas o recôndito do lugar dificultou a permanência do contato, ainda que muitos colegas da brigada tenham voltado anos depois. Das três semanas da viagem, depois de muito trabalho nas plantações do acampamento, dia e noite – eu me recordo que à época emagreci quatro quilos, pois era a primeira vez que lidava com a faina da lavoura – houve quatro dias dedicados a passeios na capital do país.

Tratou-se na verdade de visitas dirigidas a pontos históricos, de modo a aquilatar os feitos e as conquistas da Revolução de 1959, liderada por Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos, entre outros revolucionários. Visitamos sítios decisivos para o país, como o Quartel de Moncada, um dos primeiros bastiões a cair, prenunciando a queda da ditadura de Fulgencio Batista. A praça central de Havana, em que se ergue o monumento ao poeta libertador José Martí, também foi visitada, bem como a Universidade de Havana e o Museo de la Revolución.

O destino principal das visitas concentrou-se nos êxitos conquistados nas áreas da educação e da saúde, com passagens por escolas e hospitais. Conheceu-se in loco o programa "Médico de Família" implementado desde 1975, uma referência preventiva de projeção internacional. Segundo tal princípio, ao invés de o paciente procurar o hospital, é o médico comunitário quem visita periodicamente a casa de seu público, antecipando-se a enfermidades e toda sorte de moléstias. Lembro ainda, vagamente, que fomos também a uma creche, na verdade um abrigo destinado a crianças órfãs.

As caminhadas pela cidade possibilitaram observar a existência então de dois grandes problemas nacionais enfrentados: a carência de bens primários de consumo (alimentos e vestuário), o que evidentemente gera uma das insatisfações mais significativas entre os moradores do país; e a falta de energia e de combustível. Este último era uma questão gravíssima. À época, a solução contornada, na medida do possível, consistia no incentivo do governo ao uso de bicicletas e à massificação do transporte coletivo por parte da população, através dos já mencionados "Gua-Guás". Mesmo os táxis eram raros e atendiam apenas os turistas ou, em casos emergenciais, faziam as vezes de ambulância.

Do ponto de vista turístico, Cuba foi para mim uma encantadora surpresa, com seu Malecon, aprazível esplanada portuária, que acompanha a orla de Havana Velha e de seus bairros centrais. Observei uma capital lima e conservada, com muitas áreas arborizadas. Na cidade o destaque vai para o Parque Lênin e os grandes monumentos aos heróis nacionais. Isso mostrava que, mesmo ante as dificuldades então enfrentadas, o governo e sua população davam evidências de sua dignidade e de seu orgulho para com as conquistas da pátria, a avultar na comparação com as ilhas-países vizinhos, a exemplo do Haiti, da Jamaica e da República Dominicana.

Passados trinta anos daquela viagem de juventude, tenho consciência hoje de que Cuba está longe de ser perfeita e tampouco sua ilha, paradisíaca na paisagem, é um paraíso político. Fruto do trabalho coletivo humano e da dinâmica histórica de mudança e continuidade, reconheço na visão de hoje de que seu sistema político possui questões que permanecem por ser resolvidas. Mas, aos defeitos, se ajuntam os méritos de perseverar e de superar momentos críticos, que pude testemunhar há três décadas atrás. E é por isso que Cuba, goste-se ou não se seu caminho político, é ainda hoje tão conhecida e continua a alcançar índices educacionais e de saúde que lhe diferencia dos países em seu entorno centro-americano. O exemplo mais cabal disso ainda não os esportes, com suas performances admiráveis em Olímpiadas, a arrebatar medalhas e a ladear o pódio com potências geopolíticas. Se não tenho mais ilusões românticas de quando tinha 17 anos, reconheço aos 47 anos de idade que Cuba, ainda hoje, se faz respeitar.

 

Edição Final: Guilherme Mazzeo

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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