Contos oníricos (VI)
GvCult - Uol
01/02/2022 06h43
Por Bernardo Buarque de Hollanda
"… imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra".
Machado de Assis
O ruído feito pelo ônibus imitava o som da chuva. Decerto, porém, não chovia. O ar era seco. A temperatura resfriava. Do lado de fora, o vento uivava. Viajávamos rumo à cidade de Santiago. Àquela altura, ao despontar da cordilheira dos Andes, devíamos nos encontrar na fronteira da Argentina com o Chile. O silêncio e a imponência azul-anil do lugar, enegrecido pela noite, faziam-nos sentir pequenos. Ainda mais porque éramos os passageiros do único ônibus a vagar naquela estrada de madrugada, com suas curvas sinuosas, a serpentear em meio às montanhas e às íngremes colinas.
Semiacordado, estirado sobre dois assentos, pois um deles estava vago, procurava deitar de maneira mais confortável, recostando-me próximo à janela. O céu, inquiridor, contemplava-me; o cenário da vidraça invadia-me. Tudo que vislumbrava, em verdade, parecia pertencer a outro mundo, a outra paragem. Não havia vestígios de coriscos, nem tampouco de estrelas. Apenas refulgia a lua, perto aos picos de neve, no topo das montanhas.
No interior do veículo, todos dormiam. Silente, apenas o monótono ronco do motor se manifestava. Irrequieto, modifiquei de posição novamente, para ver se o sono me abraçava. Ergui a cabeça, olhei ao fundo e à frente do ônibus, no afã de encontrar alguém desperto. Nenhuma boca de luz iluminava qualquer banco, de modo que a esperança era vã. Só o motorista dava sinal de vida. Meu irmão Ernesto, de sete anos, era o único conhecido ali. Sentava na poltrona anterior à minha. Resolvi fitá-lo, certo de que dormia. Entretanto, notei que estava acordado e que exibia um ar atônito: contrito, tinha as pernas dobradas e as mãos cruzadas em forma de reza. Desejando saber o que temia, perguntei.
– Ernesto, que te passa?
– Tenho medo dessa escuridão.
– Então, olha o céu e esqueça o resto, sugeri tentando consolá-lo. Ao que respondeu de pronto.
– Não posso. Fico assustado. Tenho medo até de dormir.
Senti que deveria ser severo naquele instante. Coloquei a mão sobre seus olhos e ordenei:
– Ernesto, apaga os olhos, concentra e sonha.
Passados alguns instantes, percebi que meu esforço fora inútil. Permaneceu em seu assento a choramingar. Desisti dele e volvi à poltrona, de onde enxerguei um senhor no último banco, que fumava um charuto pela fresta da janela.
Já cansado, acomodei-me novamente no lugar em que estava até que, sem notar, caí em sono profundo. Se esse adormecimento tivesse um nome, o chamaria: "No caminho da lua".
*
De súbito, como se ouvisse o estampido de um raio, despertei assustado. Meu irmão pôs as mãos sobre meu ombro, indagando o que se havia passado. Ao que respondi ofegante:
– Foi pesadelo.
Os olhos de Ernesto eram só aflição. Pedi-lhe que aguardasse um pouco. Estava eu em descompasso. Curvilíneo. Senti-me em seguida vexado: uma legião de recém-despertos observava-me. Minutos depois, tudo foi voltando ao normal. O silêncio imperando, os passageiros a dormir. Somente Ernesto quedava-se em vigília. Suas pestanas queimavam interrogações. Já calmo, resolvi contar sucedido. Mesmo sem saber como falar aquela história a uma criança, narrei:
"Foi algo estranho, inusitado. Estava desabrigado em um ponto obscuro da cordilheira dos Andes. Os pés rijos, o corpo contraído, as bochechas roxeadas. Cercado por lhamas e índios, que me rondavam ao som de flautas e tambores. Com mantos e adornos, eram os remanescentes dos Mapuches, índios do Chile. Os mesmos cujos ancestrais, ante a chegada dos espanhóis montados em cavalos, imaginaram se tratar da vinda de entes divinos.
Bem recebido pelos autóctones, indaguei acerca do destino que tomavam. Responderam que andavam no caminho da lua. Alagado em dúvidas, não entendi o que aquilo significava. Sob passos lentos, prosseguiam calados na estrada deserta.
A trilha por que seguíamos era arenosa, mas os Mapuches, pacientes, passaram a entoar uma cantiga alegre. No percurso, deparamos com um rio que descia da gelada corredeira e o atravessamos sem dificuldade. Naquela altura, o resplandecer da lua sobre a superfície do rio produziu um efeito inesperado: pareciam vaga-lumes fulgurando n'água. Os índios comemoraram, pois era indício de bom presságio.
Sobre seixos e todo tipo de pedra, continuamos a vagar naquela procissão sem fim. Certa hora, um índio aproximou-se de mim e resolveu contar a vida de seu povo. Depois de várias histórias, pude entender o que queria dizer o Caminho da lua: de tempos em tempos, a lua declinava-se próxima ao cume da cordilheira de onde eles a cultuavam. Segundo antepassados, atingido o ápice da montanha, recebia-se a energia misteriosa da lua, que mais tarde ajudaria os Mapuches na fertilidade da terra.
Senti alívio com aquela explicação, ao mesmo tempo que incitado a chegar ao fim do percurso. Adentrávamos na etapa mais tortuosa: a escalada. Mas já era possível divisar o clarão lunático, em sua alva majestade. Galgamos, durante longo tempo, a montanha rumo ao seu topo.
Quando enfim alcançamos o intentado acme, a lua – distante cobiça, inimaginável proximidade – inebriou os olhos de todos transformando-os em halos brilhantes. Os índios, porém, ante a estonteante aparição, não deixaram esmorecer a solenidade do ritual. Estavam cônscios da missão.
Trataram de formar uma fila e, um a um, caminharam para a posição mais alta, de onde a lua agraciava com sua aura. Na minha vez, entretanto, estendi a mão e incorri no erro de abrir os olhos. Perdi a consciência e vi-me sugado como ímã pela luz da lua. Daí em diante não mais recobrei a memória e comecei a urrar desatinadamente".
Ernesto, quando terminei, tinha os olhos arregalados e o cenho franzido. Pulsava arrepio e surpresa. Seu temor elevou-se mais e mais.
Eis o que eu recordava – uma colagem onírica.
Meu irmão curvou a cabeça junto à janela e observou de soslaio a lua, imperial. Voltou-se a mim e, criança, derramou uma singela pergunta:
– João, por que a lua não morre?
Edição Final: Guilherme Mazzeo
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.