DANDISMO NEGRO – Parte 1: “Origens”
GvCult - Uol
29/01/2021 06h33
Por Hélio Rainho
Em agosto do ano passado, em plena pandemia causada pelo coronavírus, uma certa "aglomeração" chamou a atenção em várias cidades nos Estados Unidos. Grupos de homens negros apresentaram-se coletivamente e de forma súbita como que desfilando nas ruas de forma extremamente elegante e requintada, trajando ternos e trajes de grife, numa ação conhecida como flash mob, que são mobilizações coletivas para atos de protesto ou atitude política promovidas para que se crie impacto em determinado espaço publico e posteriormente gere conteúdo para causar impacto nas redes sociais.
O evento foi liderado por NeAndre Broussard, um influenciador cultural com 293 mil seguidores em seu perfil de Instagram Black Menswear (@blackmenswear), no qual são difundidos ideários de estilo como produção de narrativas afirmativas sobre homens negros no mundo contemporâneo. Numa atitude de combate à violência policial contra homens que eram considerados agressivos apenas por causa da cor da pele, o empresário de seguros começou a convocar homens negros para varias filmagens exibindo-se de ternos de luxo para desconstruir a imagem pejorativa e inferiorizante causada pelo racismo, ainda na onda de manifestações pelo assassinato de George Floyd em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020 . Definindo-se como um narrative changer (algo como um "transformador de narrativas") Broussard lembrou que a mídia muitas vezes retrata os homens negros sob uma imagem negativa, e que o flash mob seria um esforço para mudar essa narrativa e melhorar essa imagem. "Ternos significam longevidade", afirmou Broussard. "As pessoas sempre vão usar ternos. Você vai ver fotos da década
de 1920 e vê uma foto de 2020. Algo que é consistente? Ternos".
A estratégia de Broussard de uma inclusão narrativa de homens negros através do terno pode parecer uma novidade, mas segue um rastro histórico. Considerando-se a questão da diáspora africana e das lógicas de integração sócio-política do elemento negro além da África, os afrodescendentes tiveram, nesse traje, uma importante vertente simbólica para a construção de uma (nova) identidade negra nas Américas, fazendo uso de elementos estético-visuais (neste caso, relacionados à moda) para se (a)firmarem dentro de um território "estranho" ao qual seus antepassados foram transportados como mão-de-obra escrava durante o período colonizador. Em uma investigação sob a ótica da antropologia cultural que estuda a cultura material, o percurso historiográfico do terno em seu contexto específico de indumentária dos homens negros das Américas revela aspectos simbólicos da apropriação de seus usos e de uma ressignificação da peça, fazendo desse objeto de vestuário um elemento específico de resistência, afirmação e inclusão de homens negros em sociedades de supremacia cultural branca.
O percurso temporal da peça, em um breve histórico genérico do terno, tem suas origens "brancas" no século XVII como traje distintivo das cortes inglesa e francesa. O nome terno advém de sua concepção como um traje de três peças, incluindo colete, paletó e calça (embora suas versões contemporâneas a partir do século XX considerem o colete uma peça não-obrigatória). O terno masculino tem suas origens em meados do século XVII, quando o Rei da Inglaterra Charles II adotou as chamadas sotainas, que os historiadores consideram advindas da Pérsia, trazidas por embaixadores do Oriente às cortes europeias. As sotainas eram casacas longas e ajustadas, usadas com coletes, com desenho e modelagem mais próximos do corpo. Charles II, ao adotar o uso das sotainas, pretendia marcar sua diferenciação e promover uma ruptura com o estilo dominante das cortes francesas, estabelecido pelo Rei de França Louis XVII. O soberano francês, no entanto, também aderiu ao traje, que acabou se difundindo em todas as demais cortes, tornando-se vestimenta de referência dos nobres. Uma sequência de variações e recortes impostos a essa peça, marcada por uma competição entre franceses e ingleses pela supremacia do estilo masculino nas cortes européias, resultou em uma imensa variedade de paletós, até que, no início do século XIX, o uso frequente de um traje com casaco e calça cortados no mesmo tecido deu origem ao terno tal qual o reconhecemos hoje.
Evidentemente o terno fora criado para uso nas cortes brancas, mas antes dele a corte já elaborava vestimentas de gala para determinados escravos em mui raras exceções.
Há que se considerar a distinção entre os modelos escravocratas na Europa e nas Américas para se entender a diferente motivação dos dândis negros nessas sociedades. Na Europa, desde o inicio dos séculos XV e XVI, durante a exploração africana pelos europeus, crianças pequenas da África – principalmente meninos – eram carregadas pelas elites para serem "adestradas" e se tornarem um tipo especial de "escravos de luxo". Educados com padrões diferenciados, serviriam seus senhores com modos e posturas europeizadas, vestidos de librés e trajes sofisticados, formados para serem acompanhantes. Vivendo em sua maioria com seus senhores em casas individuais, esses escravos podiam sustentar de forma mais "mascarada" uma falsa aparência de elite, um modelo de dandificação cotidiana. Nas Américas, mais especificamente no século XX, os escravos eram agrupados em contingentes maiores e serviam a seus senhores nas fazendas ou plantations. Além dos poucos que seriam utilizados como escravos de luxo nas casas dos senhores, era concedido a outros participarem de eventos como o carnaval ou festividades africanas "fantasiados de senhores", ou seja, trajados de roupas refinadas dos brancos para idealizarem uma ascensão social ou mesmo a própria liberdade.
Antes de ser readmitido como estado americano em 1870, o Mississipi – um grande centro agrário caracterizado pela fortuita exploração de escravos negros – estabeleceu em 1865 os chamados Códigos Negros do Mississippi, que subordinavam de forma castradora esses "escravos de luxo" a diversas sanções judiciais em casos de fuga ou transgressão. Muito embora preservando-lhes a integridade física ante os maus tratos destinados aos demais escravos, sujeitava-os a penas de prisão e constrangimento, como se fossem propriedade ou objeto de sua posse.
O espetáculo Blackface: resposta branca para ridicularizar os dândis negros | Fonte: United States Library of Congress's Prints and Photographs
É também no século XIX – mais precisamente no ano de 1830 – que essa dandificação negra é satirizada em uma espécie de produto cultural que pode ser vista como um dos mais nocivos agentes de estereotipização do homem negro. O show de menestrel blackface era um teatro grotesco em que homens brancos de baixas classes sociais, indignados por sua inferioridade mesmo não sendo negros, satirizavam os dândis negros em um espetáculo onde atores brancos os imitavam de forma depreciativa, pintando-se de negros, ostentando ricas vestes em performances que caracterizavam homens negros como preguiçosos, ignorantes, místicos,, sexualmente promíscuos e propensos a golpes financeiros. O ator Thomas Dartmouth Rice celebrizou-se como o "Pai dos Menestréis", criando seu personagem "Jim Crow" em 1830. Esse personagem deu nome às leis de segregação racial adotadas por estados americanos em 1965 – as Jim Crow Laws, que se tornaram tema de um dos quadros do pintor afro-americano Jean-Michel Basquiat na década de 80.
Nasce dessa condição elegante dos homens negros uma importante e determinante estratégia. A pesquisadora Helen Bradley Foster vai relatar que esses "negros dandificados" passaram a ter uma consciência do status adquirido e entenderam que poderiam "tirar proveito de seu status de espetáculos sociais" (FOSTER, 1997), valendo-se disso para tornarem-se os primeiros membros da comunidade negra britânica livre. Passaram, assim, a construir uma cultura literária e visual, sobretudo após a definitiva abolição da escravatura, por meio da qual fariam circular suas imagens por meio de pinturas, gravuras e caricaturas que alternavam momentos em que se auto-exaltavam e momentos em que criticavam brancos ricos que tentavam domesticar os negros por meio de um vestuário elaborado. Assim, escravos e trabalhadores negros livres desenvolveram uma estratégia por meio da qual podiam definir sua própria identidade combinando uso de roupas, atitude e inteligência.
No próximo capitulo desta série, avançaremos um século e iremos conhecer o Harlem Renaissance, um dos mais importantes movimentos afirmativos da cultura afro-americana, bem como sua incursão no movimento estratégico dos black dandies.
Referências bibliográficas
FOSTER, Helen Bradley. "New Raiments of 'Self": African American Clothing in the Antebellum South. New York and Oxford: Berg, 1997.
HOPKINS, John. Moda Masculina. Porto Alegre: Bookman, 2013.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.