Topo

MULHERES APAIXONADAS: OS TROPEÇOS DA REPRISE

GvCult - Uol

19/12/2020 10h01

Imagem: Logo Divulgação TV Globo | Imagem site Shutterstock | Arte de Hélio Rainho

Por Hélio Rainho

Se no passado, quando foi exibida a novela "Mulheres Apaixonadas" (2003), os temas por ela abordados na dinâmica dos personagens surgiram como merchandising social e obtiveram importantes alertas e tomada de consciência sobre traumas da sociedade, o mesmo não se pode dizer sobre sua reprise pelo Canal Viva neste 2020 de outra década, que tem outros paradigmas mentais, outras leituras.

Lá em 2003, a abordagem diária de temas problemáticos ajudava a refletir sobre coisas que a sociedade precisava debater, como a dependência emocional, a dependência química, os maus tratos a mulheres e idosos, o ciúme, a possessão doentia. Em linhas gerais, a novela sempre pareceu apelativa e inverossímil, vícios indefensáveis para a retórica comum do "mas por isso é novela". Não. Não é. Pode ser obra de ficção sem desconsiderar a inteligência de quem assiste, sem apelar para clichês, sem botar a culpa no velho estilo Janete Clair. Já era um anacronismo equivocado usar em 2003 as armas dramatúrgicas de uma autora clássica de novelas dos anos 60. Quarenta anos de tropeço conceitual!

Mas, pior do que isso, é o tropeço de agora. É o veículo atual não considerar algumas métricas do pensamento e do comportamento de hoje ante certos temas sociais, reemplacando a reprise de forma (a meu ver) inconsequente. Anacrônica, descontextualizada (pois é: novelas não conseguem ser sempre atuais como de forma generalizada muitas vezes se afirma), a obra de Manoel Carlos soa hoje quase agressiva: as cenas já são comuns nos telejornais diários e não produzem mais reflexão, apenas suscitam raiva e indignação. O longo tempo de "solução" para os problemas expostos destaca mais a violência do que a punição.

Algumas cenas soam mesmo grotescas. 

A obsessão sexual do garoto branco do Leblon pela empregada negra, a obsessão sexual da patroa pelo motorista cuja noiva também trabalha na própria casa, a obsessão da professora adulta pelo aluno adolescente são alguns temas que hoje avançaram em termos de abordagem e, ali, parecem naturalizados. E antes que venham os "apologistas do mimimi" com suas erradicações de juízo ou os sentenciadores com sua demonização de tudo: não se trata de discurso moral nem puritanismo; estamos falando, nos três exemplos citados, de temas pesados como objetificação do corpo negro feminino, assédio moral e pedofilia. Só de "couvert"! E já parece um prato muito difícil de engolir na entrada. Na novela, tudo isso está absolutamente naturalizado – não é visto como erro, é retratado meramente como "folhetim", embalado à vácuo ao som de bossa nova. Novela não é filme de Godard: é um produto aberto para várias idades, que repete-se exaustivamente por meses. Por essa natureza, seus capítulos "educam", formam consciência, geram posicionamento. O mesmo discurso que lá em 2003 justificava o merchandising social – a capacidade de promover, pelo sequenciamento, uma reeducação ante a audiência – hoje justifica a crítica a um uso inadequado dessa ferramenta educadora.

Um dado estranho e perturbador: há várias situações da novela que são "resolvidas" (?) com acidentes automobilísticos. Uma recorrência dramatúrgica mórbida, insustentável e traumatizante pra quem assiste; absolutamente desnecessária e sem justificativa. Provavelmente pelo fato de um dos núcleos da trama ter um hospital e vários personagens médicos. São acidentes de carro que incluem, por exemplo, tentativa de atropelamento (leia-se: "homicídio") e capotagem por desatenção/histeria (leia-se: "infração de leis do trânsito"). Mais uma vez lembramos: não estamos diante de David Cronemberg e seu filme perturbador e extraordinário "Crash – Estranhos Prazeres" (1996), porque "Mulheres Apaixonadas" não é cinema em sala fechada com uma hora e meia para resolver seus despautérios. É novela diária em TV "aberta" – não faz diferença, nesse sentido, ser assinatura: repete-se duas vezes por dia, inclusive no horário vespertino de 13h30min. Se eu, que tenho 50 anos, estou assistindo à reprise "forçado" (ou minimamente "por tabela") por ser companheiro de quarentena de minha mãe de 80 que assiste, presumo que muitas crianças de mães entre 20 e 40 anos estejam assistindo também. Conclusão óbvia!

A própria caracterização das "mulheres" do título constitui um estereótipo bastante controverso: ao menos na leitura das personagens expostas, uma "mulher apaixonada" é um ser antissocial, irracional, agressivo, perturbado, doentio, neurótico, dominador, homicida, chantagista. Esfaqueiam maridos, traem incessantemente, agridem-se umas às outras, causam acidentes nas estradas, chantageiam, adoecem. A paixão feminina da novela é doentia. Só a feminina. Os homens circulam numa lógica de "rodízio" por várias mulheres na trama como sendo bem resolvidos, protótipos do "galã-macho-alfa", bem diferenciado. A trama é, portanto, sexista e – numa leitura mais ácida – um tanto quanto machista.

Mas o que quero dizer "gastando" todo este tempo para "culpar" uma obra antiga por sua reprise, se diariamente assistimos (e amamos!) a vários filmes antigos e lemos obras de literatura cheias de versões datadas sobre questões reconsideradas hoje sob prismas diferentes?

Como profissional de comunicação com 30 anos de atuação (eu era da TV Globo, inclusive, na época dessa novela), graduado originalmente em Comunicação Social, considero um tanto quanto superficial encarar a televisão apenas como "entretenimento". Não é. Em várias de suas obras, o autor Muniz Sodré, especialista nas análises sobre a telinha, atesta que a TV tem propriedade como instrumento educativo, ideológico, lembrando que "Nesse contexto social em que a democracia é mais senso-comum e ambiência cotidiana do que paixão ideológica, os meios de comunicação adquirem um novo estatuto cultural e uma posição de poder sem precedentes na História do mundo" (Sodré 1996:70).

A crítica em questão não se resume ao contexto de uma obra em si, mas à sua forma de veiculação. O produto "Mulheres Apaixonadas" é um objeto de estudo, um recorte. Não para ser demonizado – nem seu autor, nem a obra, nem a emissora, entenda-se! – mas para servir de reflexão sobre o quanto o raciocínio simplista do revival empacotado na lógica nostálgica do "Vale a Pena Ver de Novo" pode redundar numa deseducação da leitura de vários temas nevrálgicos em nossa sociedade atual.   

Referências bibliográficas

SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco. Rio de Janeiro: Vozes, 1971. 

____________. O monopólio da fala. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.

____________. A verdade seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

____________. A máquina de Narciso. Rio de Janeiro: Cortez, 1984.

____________. O social Irradiado. São Paulo: Cortez, 1992.

____________. Reinventando a cultura. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

MULHERES APAIXONADAS: OS TROPEÇOS DA REPRISE - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

Mais Posts