“Brasília, contradições de uma cidade nova”
GvCult - Uol
14/12/2020 07h38
Divina tragédia moderna – "Brasília, contradições de uma cidade nova" em uma perspectiva Weberiana e Simmeliana
Por Luiz Felipe Guimarães Flores
As teorias de Weber e Simmel enquadram o capitalismo ocidental, as grandes metrópoles e a economia monetária no século XIX e começo do século XX. Porém, suas categorias de análise, seus conceitos e suas proposições ajudam a compreender o mundo até hoje, quase um século depois. Dessa forma, é possível interpretar a moderna cidade brasileira à luz da teoria desses dois pensadores.
Nesse sentido, o curta "Brasília: contradições de uma cidade nova" (1967), de Joaquim Pedro de Andrade, representa uma oportunidade única, para a aplicação desses conceitos e desses temas em um caso real e significativo. Dessa forma, considera-se Brasília como um microcosmo que sintetiza diversos aspectos e dilemas das cidades brasileiras, ainda que carregue suas especificidades. Afinal, a atual capital do Brasil foi uma cidade feita do zero, planejada desde antes de sua construção. Concebida por Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e tantos outros como o símbolo do avanço do país e como um apogeu de todo uma ideologia de planejamento urbano, Brasília deveria ser um modelo de cidade inovador. A metrópole deveria promover a integração, combatendo a desigualdade e a exclusão social, e simbolizar a definitiva modernização brasileira.
Porém, ao se tornar realidade, essa cidade também desenvolve desigualdade e exploração. Dessa maneira, a cidade idealizada por JK se assemelha a outras cidades do país, igualmente marcadas tanto pela presença massiva da economia monetária, da divisão do trabalho e do individualismo, quanto pela desigualdade, exclusão e exploração. Assim, Brasília consegue atingir as conquistas referentes à vida metropolitana, mas se vê presa nos mesmos dilemas e nas mesmas contradições das outras cidades modernas brasileiras, no geral, e mais especificamente, do capitalismo ocidental moderno e seu meio urbano.
Para mostrar como Brasília realiza esse duplo movimento de conquistas e estagnação, será utilizada a obra dos autores clássicos da Sociologia, Weber e Simmel. Abordaremos, primeiramente, o planejamento dessa cidade erguida do zero e como nesse são incorporados valores típicos do capitalismo na análise de Weber e da economia monetária na vida metropolitana concebida por Simmel. Posteriormente, analisaremos o funcionamento real da capital do país, mostrando mais uma vez a extensão das teorias sociológicas desses dois autores ao analisar fenômenos que eram percebidos tanto na Alemanha do século XIX e XX quanto na moderna cidade brasileira da década de 50 e 60. Ao finalizar essa análise, será demonstrado como as tendências do capitalismo e da cidade moderna conseguem tragar até mesmo uma cidade nova, que fez muito para fugir das inescapáveis contradições e conflitos da Modernidade.
O sociólogo alemão Max Weber propunha que o espírito do capitalismo ocidental moderno foi formado a partir do ethos protestante, mais especificamente, do ethos calvinista. Isso teria sido crucial para transformar o ímpeto de acúmulo de riquezas, existente em várias épocas da história, em uma conduta de vida pautada na racionalidade. Dessa maneira, em seu livro "Economia e Sociedade", Weber opõe o confucionismo e o puritanismo, afirmando: "o racionalismo confuciano significava adaptação racional ao mundo. O racionalismo puritano significava dominação racional do mundo" (WEBER, 2000, p.158). A vida cotidiana deveria ser "uma vida moral metodicamente racional" (WEBER, 2000, p.155), uma demonstração de esforço. Nessa perspectiva, o sucesso individual seria a confirmação da dádiva divina e da salvação. A vida cotidiana era ao mesmo tempo rejeitada e abordada de forma objetiva e racional.
Dessa forma, o empreendimento de construção e de dominação racional do mundo pode ser observado no projeto de construção de Brasília. Essa empreitada arquitetônica se posiciona do lado oposto de uma adaptação racional ao mundo, ao decidir dominar o mundo e a vida organizando recursos humanos e materiais para uma iniciativa fundamentalmente intramundana. A capital de JK ainda vai além na incorporação desse ordenamento racional da realidade ao ser uma cidade planejada antes mesmo de existir, fato pelo qual se diferencia de ocupações e expansões espontâneas e orgânicas, como ocorrido em outras cidades brasileiras.
Além disso, Brasília também incorpora a racionalidade em seu planejamento urbano e em sua arquitetura. De acordo com o curta de Joaquim Pedro de Andrade, Brasília segue uma série de padrões, como os modelos de edifícios. Ainda há uma grande presença de retas e de formas geométricas na arquitetura e na malha urbana. Há árvores, espaços verdes e grandes espaços vazios. Os mesmos modelos de moradia e de vizinhança são padronizados para diferentes unidades habitacionais. Isso diferencia Brasília de ocupações espontâneas e de desenvolvimentos desordenados.
Também é possível perceber que, enquanto capital do país, Brasília incorpora muito da burocracia e da dominação legal nos moldes propostos por Weber. No documentário, afirma-se que o Palácio da Alvorada foi planejado com o objetivo de ser como a casa de um cidadão comum. Isso se alinha diretamente com um afastamento do líder tradicional e do líder carismático, visto como excepcional. O presidente não seria alguém legitimado pela tradição ou por suas características pessoais, mas sim pelo estatuto que segue. O chefe de Estado brasileiro seria um cidadão elevado à condição de presidente por uma votação, pautada em regras. Mesmo que Weber reconhecesse seu caráter muitas vezes carismático (WEBER, 2000, p.130), a burocracia conteria esse aspecto de sua dominação. Nesse sentido, o exercício de seu poder seria restringido por um conjunto de regras e seria justamente o seu cumprimento a fonte de legitimidade de quem mora no Palácio da Alvorada.
Dessa forma, percebemos que a cidade de Brasília, como apresentada no documentário, representa um empreendimento capitalista moderno de transformação do mundo prático, pautado em uma conduta racional. A racionalidade se espelha tanto na elaboração da cidade como em seu planejamento urbano e arquitetura padronizados. A cidade, enquanto capital, reflete os ideais de dominação legal através da burocracia, enquanto afasta a importância da tradição ou de características pessoais do governante.
Porém, é necessário afirmar que a realidade prática da cidade produz situações que, apesar de comuns em várias metrópoles brasileiras, escapam ao escopo das teorias de Weber. Isso, acreditamos, se deve mais a questões de recorte da obra desse sociólogo. Weber objetivava compreender a especificidade do capitalismo moderno, visto que a ambição por riquezas esteve presente desde muito tempo na história humana. Portanto, dentro desse recorte, sua obra não enquadrou como assunto principal a desigualdade social e a exclusão que acontece no capitalismo e nas cidades. Além disso, a metodologia weberiana dos tipos ideais faz abstrações da realidade, deixando de fora certos conflitos que não aparecem na teoria. Assim, acreditamos que Weber não poderia ter previsto fenômenos como o uso da burocracia como forma de burlar a legalidade, como no caso registrado no curta "Brasília: contradições de uma cidade nova", em que a divisão de uma firma em outra é feita para que o funcionário não tenha seu tempo de casa reconhecido, já que essencialmente a nova firma é igual a de que se originou.
Por outro lado, acreditamos que na teoria do sociólogo Georg Simmel há a possibilidade de uma análise da desigualdade de forma que não haveria em Weber.
Tome-se como símbolo dessa contradição das cidades brasileiras os migrantes de Brasília. Atraídos pela possibilidade de ganhar dinheiro e de melhorar suas condições de vida, pessoas de todo o Brasil vieram com suas famílias- ou parte delas- em busca de emprego na construção da capital. Apesar de essenciais para esse colossal empreendimento, os trabalhadores se viram desamparados com a inauguração da cidade. Agora, inseridos em uma lógica abusiva de trabalho, os operários permanecem em habitações ao redor de Brasília, em condições precárias mas sem retornar para suas cidades originais.
Essa dinâmica de trabalho, em que os operários são contratados apenas para um serviço e depois desconsiderados se mostra como fator crucial da economia monetária de Simmel. Nesse modelo econômico, a divisão do trabalho, enquanto relação racional, se dá de tal forma que o empregado vire apenas um número. Segundo o sociólogo alemão, "… nas relações racionais, se trabalha com o homem como um número." (SIMMEL, 1963, p.15). Assim, a pessoa contratada vira um rosto anônimo e suas demandas após o término do contrato são ignoradas. Isso dificilmente ocorreria em uma cidade rural como idealizada por Simmel, já que as relações seriam mais íntimas e muito provavelmente o trabalhador seria alguém conhecido e estimado. Essa dinâmica presente em Brasília é uma característica marcante da desigualdade social no país e, mais especificamente, do êxodo rural.
Dessa forma, é possível constatar que as teorias de Weber e Simmel, mesmo sendo de quase um século atrás, permanecem úteis e eficazes para analisar as cidades e o capitalismo ocidental moderno. Suas categorias, seus conceitos e seus temas encontram respaldo na cidade moderna brasileira, mesmo em casos tão atípicos e diferenciados quanto uma cidade como Brasília, planejada e erigida do zero.
Mesmo atuando como símbolo da racionalidade e da modernidade econômica, Brasília ainda engloba a desigualdade e exclusão social características do capitalismo ocidental moderno e das suas cidades. Mesmo conseguindo atingir os benefícios da dominação racional-legal, da transformação do mundo e da objetividade, a cidade exclui parte fundamental da sua população ao tratá-la como uma massa anônima, números sem necessidades para além do contrato. Atingindo o Paraíso dos aspectos positivos do capitalismo como concebido pelos sociólogos clássicos, a capital de JK se vê tragada pelas forças infernais da desigualdade e dos conflitos de classe inerentes ao capitalismo e à metrópole. Assim, Brasília se situa no Purgatório das cidades modernas, presa em uma divina tragédia da modernidade.
FILMOGRAFIA
ANDRADE, Joaquim. (1967), "Brasília – Contradições de uma cidade nova". Brasília: Filmes do Serro – documentário.
BIBLIOGRAFIA
SIMMEL, G. (1963), "A metrópole e a vida mental". In: VELHO, O. G. (Org.) O fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar.
WEBER, Max. (2000), "Sociologia". In: Gabriel Cohn (Org.). São Paulo: Ática, p. 128-159.
Luiz Felipe Guimarães Flores é aluno do segundo período no curso de Ciências Sociais na FGV – CPDOC, este texto é fruto da disciplina Sociologia 1, ministrada pelo professor Bernardo Hollanda.
Edição Final: Guilherme Mazzeo
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.