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SOBRE KAFKA, JOSEFINA E O FASCÍNIO DO FASCISMO

GvCult - Uol

17/10/2020 07h31

Franz Kafka| Fonte: Rede social Pinterest

Por Hélio Rainho

"Nossa cantora se chama Josefina. Quem não a ouviu, não conhece o poder do canto."

Sem Kafka, a literatura jamais teria sido tão moderna, nemtão provocativa, nem tão modular, nem tão inquietante. Enquanto para muitos o autor fora considerado um arquiteto de tramas surreais, foi nosso catedrático-mor na obra kafkiana – o brilhante professor Modesto Carone (1937-2019) – quem atestou, em sua crítica literária, que o tcheco nada tinha de surreal: ele era é muito realista, e sua obra mostrava figurativamente não um universo fantástico, mas a crueza dilacerante de nossa própria realidade.

Atenho-me particularmente a um conto que sintetiza, em linhas mais econômicas, a mesma saga aterradora do mutante Gregor Samsa em A Metamorfoseea odisseia sócio-burocrática de Josef K. em O Processo, dois clássicos do mesmo autor. Trata-se do conto Josefina a cantora ou o Povo dos Camundongos.

A perturbadora trama sobre a ascensão e a queda de uma gloriosa cantora (uma ratazana?) desliza nas linhas oscilantes do romance metafórico como um desaguar de águas turvas em uma estranha ribanceira, bem ao gosto de seu autor. São linhas que oscilam evidentemente não em sua qualidade – a qual só faz engrandecer-se desde o prólogo presente nas primeiras frases até o seu desenrolar final; a oscilação é um recurso dramático do autor para ilustrar os próprios vai véns da vida, as obras do acaso, as variações do mundo em que vivemos onde, a cada instante, somos surpreendidos por novas verdades e velhas mentiras.

Na obra, um narrador em primeira pessoa enaltece o virtuosismo cênico e a voz apoteótica de Josefina, considerada a estrela mor de um povo para o qual "a música mais amada é a paz do silêncio"- aforismo que parece, por si só, transcender o universo do conto. Se existe, de fato, um mundo onde nem mesmo a encantadora arte da música consegue superar a paz do silêncio é porque, talvez como em nosso próprio mundo, haja alarido demais e pouca contemplação. Ao mesmo tempo, porém, o conto revela a mesquinhez desse povo que idolatra e deprecia sua diva maior, o que mostra que o excesso de apreço pela contemplação não evita nenhuma das duas coisas: nem o apego à música, nem o descompromisso com os valores humanos.

No texto, ideias se orquestram e se opõem em sequência; verdades e mentiras se misturam em estranha cumplicidade lúdica, como se não existisse aquilo que gostaríamos que fosse uma única e imutável realidade. Aquela cujo canto "não existe a quem não arrebate" é, dois parágrafos depois, a mesma que "em círculos de confiança" há quem admita "não ter nada de excepcional".

Seria, de fato, um "canto" aquilo que Josefina emitia e que fascinara sua audiência – sendo esta não apenas plateia, mas um "povo"?

Questiona o narrador este fato, subvertendo a crença inicial da soberania da musa diante da própria inconsistência dos que a idolatram, em uma certa analogia com tantos vozerios que fascinam multidões e povos, mesmo estes estando cientes de que tudo não passa de uma aparência enganosa, uma falácia, uma demagogia populista: o mais atrativo engodo em que se pretende (ou se precisa) acreditar.

O canto excelente se torna questionável. De canto questionável, se torna assobio. De assobio, se torna sibilo. E assim, passo a passo, vai-se destituindo o mito de Josefina no conto. O narrador, a princípio fascinado pela personagem fascinante, pouco a pouco se convence e dissuade a si mesmo e aos que o ouvem (nós, leitores) da grandeza da personagem.

Josefina é descrita a certo tempo como "aquela que canta para ouvidos surdos": que fascínio, portanto, poderia exercer uma cantora a um povo que nem ao menos a podia ouvir?

É nesse dilema dialético-crítico proposto por esse narrador sobre a dicotomia do amor e ódio / grandiosidade e mesquinhez / encanto e desencanto / divindade e profanação que Kafka vai descortinando em Josefina talvez a possibilidade de se encontrar nessa estrela dos camundongos a metáfora do fascismo ou das grandes narrativas sedutoras dos tempos modernos. O conto fala de uma falsa persona, de um falso discurso (nem ouvido), mas em todo o tempo evoca que o fenômeno de Josefina não é seduzir este ou aquele em particular: o seu fascínio é sempre sobre as multidões!

"A notícia de que vai cantar se espalha, e depressa e logo desfilam as procissões" – diz o narrador, apontando para uma aclamação, uma idolatria político-religiosa, um anseio de divindade, uma voz que emoldura-se no fanatismo e na veneração.

O conto fantástico de Kafka era fantástico, mas não era surreal. Há uma infinita possibilidade de leituras para se pensar Josefina em outros tempos – nos nossos, também. Kafka foi preciso ao apontar que ela "desprezava dificuldades exteriores", usava "meios indignos", possuía um "direito fora de dúvida". Em dado momento, o autor refere-se a essa multidão que a venera como "partidários"; afirma haver contra ela uma "recôndita oposição": é inevitável que essas menções conduzam a uma leitura ainda mais politizada do conto fantástico.

O que há de maravilhoso em Kafka é que ele já sabia, há quase 100 anos atrás, que todos nós encontraríamos 100 anos depois uma mesma Josefina e um mesmo povo de camundongos a cortejá-la!

Ainda bem que ele o narrador também prenuncia o fim de Josefina: ela iria "ladeira abaixo" até que chegasse o tempo em que seu último assobio iria"soar e emudecer".

 

"Ela é um pequeno episódio na historia eterna do nosso povo e o povo vai superar a perda"

 

Que assim seja! É o que todos nós, os humanistas e amantes da liberdade, ardentemente e kafkianamente esperamos!

Edição Final: Guilherme Mazzeo

 

 

 

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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