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Desvio&divergência(II): Gilberto Velho: clássico da antropologia brasileira

GvCult - Uol

04/02/2020 06h19

Gilberto Velho – Fonte: Acervo O Globo.

Por Bernardo Buarque de Hollanda

 A coluna da quinzena passada tematizou a obra de um sociólogo estadunidense, Howard Becker, com especial atenção ao livro Uma teoria da ação coletiva. Este fora publicado em português no ano de 1977, graças à inovação editorial de Jorge Zahar e à sua Biblioteca de Ciências Sociais, montada de modo pioneiro por Gilberto Velho (1945-2012) junto àquela editora. No texto de hoje, vamos abordar o impacto e a apropriação das ideias beckerianas, por meio de dois textos de autoria do antropólogo Gilberto Velho nos anos 1970.

São eles: "Estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia social" e "Estigma e comportamento desviante em Copacabana". O primeiro deles retoma a discussão de Becker sobre desvio e introduz a visão de que deve haver uma maior interligação, por parte dos estudiosos, de fatores sociais vis-à-vis dos elementos de cunho psicológico e até biológico. O segundo texto analisa empiricamente um caso de estigmatização de comportamento desviante e procura demonstrar que este é consequência muito mais da forma como outros indivíduos rotulam a ação do que uma característica inerente ao comportamento.

Gilberto Velho afirma que sua intenção é discutir o desvio e superar a relação que se estabelece entre este conceito e a ideia que se tem dele como um fenômeno patológico, ou seja, uma doença individual ou social. O autor utiliza-se, para contrapor a noção de que o indivíduo desviante é um ser "anormal" ou "insano", de estudos feitos pela própria psiquiatria, que identificam mecanismos socioculturais e estendem à Antropologia o debate sobre esse assunto, assaz espinhoso.

Entretanto, Velho salienta que não se pode somente explicar o desvio conforme formulam os funcionalistas, isto é, concebendo-o como consequência social e como fator que demonstra a má integração funcional da sociedade.

Para expor melhor o argumento do funcionalismo, com base no conceito de anomia, Velho resume a teoria de Robert Merton (1910-2003), outro gigante da sociologia norte-americana, a respeito de estrutura social. Este sociólogo postura que tal estrutura estabelece, primeiramente, os objetivos que os indivíduos devem buscar. Em seguida, sublinha quais os meios institucionais a serem utilizados para o alcance de determinados fins. Em contrapartida, reconhece-se que pode haver um desequilíbrio entre a ênfase cultural atribuída aos meios e aos objetivos, de maneira que certas pessoas infrinjam as normas e a estrutura social, por fim, não funcione como se desejava.  

Logo, pode-se perceber que, relativamente à perspectiva do desvio, só ocorreu a mudança de uma patologia individual para uma patologia social, não sendo suficiente, portanto, para explicar o fenômeno.

Além disso, outra crítica ao funcionalismo e a Merton é a de que esses compreendem a sociedade como uma ordem homeostática não-problematizada. Em outras palavras, é como se a estrutura social, apesar de interregnos de anomia, fosse um sistema harmônico capaz de equilibra-se por natureza, facilitando a rigidez e o preconceito sobre o desvio.

O autor aponta o que considera os erros provenientes do sociologismo exacerbado. O termo "social", que de início foi entendido com razão, como analiticamente autônomo das demais esferas de compreensão do ser humano, adquiriu uma dimensão muito particularizada, após a ênfase de seu poder por parte das teorias sociológicas. Por isto, deve ser repensado.

Gilberto Velho tenciona integrar esse termo aos outros componentes do comportamento humano, quais sejam, o psicológico e o biológico. O autor reafirma a importância de se perceber o homem e sua ação conforme o resultado holístico da interação dos elementos citados acima, por meio de exemplos como o da própria formação do homo sapiens, ocasião em que se verificam convergências de fatores étnicos, componentes biológicos e ainda condicionamentos culturais.

Assim sendo, pode-se retornar à discussão sobre desvio, a começar pelo questionamento da própria denominação. Em seu parti pris, entende-se a estrutura social e cultural como uma categoria que não é nem fechada nem homogênea. Os interacionistas, nessa área, desenvolveram o conceito e constataram que não é somente a estrutura social determinante do desvio, mas a relação verificada entre indivíduo, ação, valores dominantes e reação. Deste modo, o que importa não é o comportamento em si, mas a visão dos indivíduos acerca do mesmo.

Um outro avanço teórico, acompanhado pela mudança metodológica, encontra-se na percepção beckeriana sobre desvio, em conexão com a existência de múltiplos subgrupos e facções numa dada sociedade. A disputa do poder político, enfrentada por aqueles que constituem uma organização social, acarreta conflito entre os mesmos, vistos que determinados agrupamentos impõem suas regras a outrem. Em decorrência dessa tensão conflitante, surgem aqueles seres denominados inadaptados, desviantes ou anormais, que conferem uma dinâmica própria à sociedade.

Em adendo, o autor reafirma que, dando à estrutura social uma maior mobilidade, é possível dimensionar outros aspectos da vida coletiva, como o desvio, ampliando o conhecimento da própria ação humana. Ademais, ao que alquebrar a rigidez da visão sociológica, aliando a palavra "social" à palavra "psicológico" e "biológico", avançar-se-á no sentido do desenvolvimento integrado de novas teorias.

O segundo texto do antropólogo brasileiro que selecionamos para comentar tem como objetivo descrever o estigma sofrido em dois prédios de Copacabana, tais como pesquisados nos idos de 1970. O propósito é mostrar de que forma a rotulação de determinados locais como possuidores de indivíduos desviantes é mais um caso de acusação entre pessoas do que um fato que contém procedência e fundamento empíricos.

A má reputação que ambos os prédios em questão possuem ganha relevância, segundo Velho, devido ao fato de se encontrarem situados em Copacabana, um bairro de prestígio situado na zona sul do Rio de Janeiro. O contraste entre a atração exercida pela localidade entre os moradores e o desprestígio residencial dos dois prédios em específico acarreta nos habitantes uma situação ambígua de identidade. Para os vizinhos dos prédios, a possibilidade de serem confundidos com os moradores de reputação duvidosa resulta em uma acentuada discriminação de todo e qualquer habitante do indesejado edifício.

Com base nesse imbróglio, cria-se aquilo que o autor denomina estigmatização. Os moradores referidos passam a ser etiquetados como desviantes. Os alvos preferenciais são os homossexuais e as prostitutas, bem como pessoas de classe social considerada inferior. Entretanto, o antropólogo constata em sua pesquisa de campo que a maioria dos residentes daquelas habitações não pode ser enquadrada nesses estereótipos.

Diante do embaraço, os preconceitos externos são internalizados pelos moradores do prédio, que passam a discriminar e a agir de forma ríspida e moralista com todos os indivíduos. Alguns indicadores estimulam a suspeita sobre determinadas pessoas, especialmente quanto aos jovens reunidos em grupo, aos homens não casados e àqueles indivíduos cuja ocupação se desconhece. A suspeição recai até mesmo naqueles cujos trajes denotam impropriedade ou extravagância.

  Com efeito, vê-se que o medo de ser estigmatizado faz com que os indivíduos procedam de forma semelhante e estigmatizem por tabela outras pessoas, com a atribuição de comportamento desviante. A identidade na vida em sociedade encontra-se, pois, na dependência daquilo que será estipulado pela própria comunidade.

Face ao exposto, concluo que ambos os textos de Gilberto Velho, ainda que datados dos anos 1970, interessaram sobremaneira aos dias de hoje. A discussão do desvio sai do terreno patologizante e adentra a esfera judicativa, com julgamentos decorrentes de interações sociais que revelam reações e introspecções dos valores coletivos nos indivíduos. O estigma sofrido por muitas pessoas, além de colocá-las em situações ambíguas e desconfortáveis, incorpora características na forma de ser e de agir chancelada pelo meio social circundante.

É lícito ressaltar que o texto mostra como os indivíduos compreendem certos valores e atitudes tal como se fossem eles próprios inerentes. Isto acontece quer seja com os moralistas quer seja com os desviantes. O principal aspecto a ser enfatizado, pois, é o estigma como decorrência de um constructo social. Desta maneira estabelece-se a interação do sociólogo com o psicólogo e com o biólogo, preconizada por Gilberto Velho no primeiro texto que analisamos, e supera-se a compartimentação deletéria do saber.

 

Post Scriptum: para uma atualização do debate sobre o bairro de Copacabana, aqui considerado em pesquisa dos anos 1970, e para a reconstituição da ambiência do estigma em uma unidade residencial, sugiro assistir ao cativante documentário de Eduardo Coutinho, Edifício Master (2002). Sem pretensões acadêmicas, o filme traz vários insights para pensar o assunto aqui abordado no limiar do século XXI. 

Edição Final: Guilherme Mazzeo

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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