Topo

O passado é um país estrangeiro (I): uma leitura da obra de David Lowenthal

GvCult - Uol

03/09/2019 07h12

David Lowenthal engages a panel during "Author Meets Critic: The Past is a Foreign Country—Revisited," a special session at the 2016 AAG annual meeting in San Francisco.

Por Bernardo Buarque de Hollanda

"Nós vivemos o presente; e tudo o que resta é um esqueleto"

Simone de Beauvoir

1. O autor e o texto

David Lowenthal (1923-2018), falecido no ano passado, com 95 anos de idade, foi professor emérito de Geografia da University College London. Nova-iorquino, Lowenthal é graduado e pós-graduado em Harvard, Berkley e Wisconsin, tendo sido professor visitante de mais de seis universidades estadunidenses, antes de se radicar na Grã-Bretanha. Seus cursos abrangem as áreas de arquitetura paisagística, psicologia ambiental, geografia e ciência política. The past is a foreign country foi publicado em 1985 e versou sobre um tema que interessava o autor desde o início da década de 1970. Sua pesquisa foi iniciada em 1977 e, portanto, compreendeu oito anos de leitura e escrita.

O livro apresenta três grandes eixos temáticos: o primeiro, "Desejando o passado", procura pensar como o mundo pretérito nos enriquece e empobrece, e as razões pelas quais nós ou o abraçamos ou nos afastamos dele. O segundo tema, "Conhecendo o passado", tenta entender de que forma nossas lembranças fazem-nos conscientes do tempo já transcorrido. O terceiro e último, "Mudando o passado", procura aquilatar como e por quê nós transformamos o que vem até nosso alcance, e de que maneira estas alterações afetam a nossa herança e a nós mesmos.

A obra de Lowenthal vem-se somar à abordagem dos três eixos constitutivos da historiografia contemporânea: temporalidade, memória e esquecimento. Se os conceitos de tempo e história podem ser abordados à luz da antropologia, da história da cultura e da filosofia, Lowenthal faculta uma perspectiva proveniente da área de geografia, que integra estes dois conceitos (tempo e história) ao terceiro, o de memória. A erudição e a multiplicidade da pesquisa de Lowenthal faz com que seu livro assuma um viés transdisciplinar. Coloca-se acima das especializações profissionais que estudam a memória, o conhecimento histórico e a "relíquia", e que são, respectivamente, a psicologia, a história e a arqueologia. Para tal, o autor recorre a fontes que perpassam a literatura, a filosofia, a psicanálise, a fotografia, a televisão e o cinema.

Além de The past is a foreing country, Lowenthal tem quarto livros publicados: George Perkins Marsh, prophet of conservation, dedicado a um ecologista norte-americano; Possessed by the past; Shakespeare and the good life: ethics and politics in dramatic form; The heritage crusade and the spoils of history.

2. O argumento do livro

A tese central do geógrafo é a de que há três vias de acesso básicas à consciência do passado e ao seu conhecimento: memória, história e relíquia. O interesse pelo estudo do valor e da natureza de cada uma desses modos de aceder a tempos pretéritos permite que o Autor proponha um diálogo tenso e uma relação inextricável, interativa e inseparável, entre o passado e o presente. A análise destas três variáveis permite-nos o entendimento da maneira pela qual vivenciamos e acreditamos na existência do passado.

Ao contrário da indistinção entre uma e outra, própria de sociedades ágrafas e do período pré-moderno no Ocidente, ou da visão estanque que, a partir do Renascimento e do advento da imprensa separou progressivamente ambas, tornando o passado um "país estrangeiro" e diferenciando suas épocas segundo determinados perfis e contrastes, ou ainda a visão evolutiva que estabelece uma noção baseada em etapas, em hierarquias e em sequências que escalonaram as duas através da ideia de anterioridade e posterioridade, o autor defende o argumento de que passado e presente articulam-se a partir de filtros e de fluxos temporais que são instáveis, dinâmicos e fugidios, assim como, multiformes, mutáveis e complementares.

Nesse sentido, pode-se dizer que o caráter "estrangeiro" do passado foi um processo iniciado na história do Ocidente com a Renascença, quando surge um interesse pela Antiguidade e quando começa a se delinear um desejo por um outro tempo histórico. É no período do Renascimento que surge também um afã pela verificação dos fatos e que, com o advento da imprensa, começa a se instaurar uma cisão entre a oralidade e a escrita, entre a memória e a história.

Essa dimensão "estrangeira" do que passou vai atravessar também o Romantismo, fase em que se identifica um determinado culto a um passado idealizado, à configuração de estilos caracterizadores de certos períodos e à prática do antiquarismo. O processo de separação entre o passado e o presente se consolidaria na virada do século XIX para o século XX, com a definição de modernas técnicas de investigação histórica, tal como propostas por Leopold Von Ranke.

A seguir, algumas indicações de como o autor coloca o problema:

"A memória, como já indiquei, é inata e imediatamente discernível da experiência presente. A distinção entre o passado histórico e o presente não é inata, mas adquirida, e com frequência incerta ou ausente. Onde o conhecimento do passado é transmitido oralmente, por exemplo, ou onde não tem registros, o passado é percebido inteiramente em função de relatos do presente" (p. 138)

*

"…a condição do passado depende de uma sensibilidade histórica que dificilmente pode começar a operar sem registros escritos permanents. Somente a preservação e disseminação do conhecimento histórico por meio da escrita, e especialmente por meio da imprensa, separa nitidamente o passado do presente". (p. 138)

Assim, a memória, seja ela pessoal ou coletiva, com seu apelo à lembrança, à recordação e ao insight, e com sua importância na formação da identidade; a história, com sua base voltada para registros, testemunhos e documentos; e a relíquia, como artefatos produzidos pela natureza e pelo homem, selecionados e variados historicamente, com seus objetos tangíveis e com sua capacidade sugestiva e evocative – estes três elementos combinam-se e interligam-se para a todo o momento elaborar uma visão dinâmica do passado em função da experiência e da vivência, do ideal de conservação e da expectativa presente.

A remissão do Autor a toda sorte de fragmentos, vestígios, reminiscências, resíduos e resquícios possibilita o enquadramento da discussão em torno de algumas polaridades: de totalidade e particularidade; de continuidade e descontinuidade; de ordem e caos; de unidade e multiplicidade; de estabilidade e dinamicidade, de repetição e singularidade; de lembrança e esquecimento; de objetividade e subjetividade.

3. Interlocução

São vastas as interlocuções estabelecidas pelo autor ao longo do texto. No que diz respeito ao conceito de memória, observa-se nas entrelinhas uma contraposição com a concepção clássica de Henri Bergson (1859-1941). Para o filósofo francês, por meio do fluxo de memória e de sua relação com a matéria, há a possibilidade de recuperação de todo o passado existente nas lembranças.

Já para David Lowenthal, sendo a memória seletiva, exposta ao desgaste, o ser humano é capaz de recuperar e apreender apenas uma mínima fração das percepções capturadas da realidade. Coloca-se em xeque, por isto, a crença na verdade e na integralidade das reconstituições mnemônicas.

Para Lowenthal ainda, nunca é possível repetir integralmente uma experiência passada. Procura-se neste sentido também ampliar o escopo da discussão, trabalhando o conceito de memória não mais isoladamente, mas em conexão com a ideia de história e de fragmentos.

Há duas passagens que ilustram bem tal contraposição entre Lowenthal e Bergson:

"Seja ordenado ou casual, o passado relembrado diverge substancialmente da experiência original. Não podemos mais aceitar o ponto de vista de Bergson, de que a função da memória é conservar todo o passado, ou a visão de Penfield, de que cada acontecimento apreendido pode ser reconstituído com precisão. Ao contrário, a passagem do tempo provoca mudança qualitativa da memória, bem como a sua perda. Novas experiências alteram continuamente os esquemas mentais que moldam o que foi previamente lembrado" (p. 101)

"A função fundamental da memória, por conseguinte, não é preserver o passado mas sim adaptá-lo a fim de enriquecer e manipular o presente. Longe de simplesmente prender-se a experiências anteriores, a memória nos ajuda a entendê-las. Lembranças não são reflexões prontas do passado, mas reconstruções ecléticas, seletivas, baseadas em ações e percepções posteriors e em códigos que são constantemente alterados, através dos quais delineamos, simbolizamos e classificamos o mundo à nossa volta". (p. 103)

No que diz respeito ao conhecimento histórico e às relações entre a história e a literature, parece haver uma crítica àqueles que advogam o ressurgimento da narrativa na história, à terceira geração francesa dos Annales e, possivelmente também, à micro-história italiana. Embora procure situar o mesmo tronco de origem que une a narrativa histórica à narrativa ficcional e questione o caráter absolute de uma ideia de verdade e de fato científico, Lowenthal critica a especialização e a fragmentação do conhecimento histórico:

"Voltados para vidas e amores dos pobres anônimos, armados com novos tipos de fonts e percepções derivadas da ficção, do simbolismo e da psicanálise, os historiadores da nova narrative procuram esclarecer as realidades íntimas das sociedades do passado. Mas o enfoque é algumas vezes tão restrito que os 'estudos de caso' parecem excêntricos e não característicos; não conseguindo relacionar as vidas e os acontecimentos que estudam com áreas mais amplas, eles fragmentam ainda mais o conhecimento do passado" (p. 125)

4. Arquitetura do texto e questões

O texto apresenta uma estrutura composta de enunciados e de proposições conceituais, alguns dos quais parecem conter um caráter quase aforístico, seguidas de exemplos buscados nas mais diversas fontes de conhecimento e no aparato de erudição do autor. A exemplificação permite que se visualizem os aspectos teóricos defendidos no texto.

A nosso juízo, parece que Lowenthal poderia ter incluído em sua vasta análise das concepções de memória a discussão e a perspectiva levantada por Walter Benjamin acerca de suas teses sobre o conceito de história e a ideia de ressurgimento cíclico dos movimentos históricos que, ao longo do tempo, foram esquecidos ou oprimidos, a exemplo da "história dos vencidos".

Parece-nos também que poderia ter sido introduzida a discussão benjaminiana acerca do declínio da aura do objeto de arte na modernidade. Esta repousa na ideia do valor da originalidade e da autenticidade da relíquia como objeto da antiquidade que, resiliente, sobrevive no presente. Se a política de preservação dos antiquaristas no século XIX promoveu ao mesmo tempo em que valorizou as relíquias, a descontextualização do seu habitat de origem, é possível indagar em que medida a proliferação da técnica e da reprodução artística percorre o caminho inverso.

"Por serem ubíquas, as relíquias sofrem desgaste maior do que as lembranças ou histórias. Enquanto a história impressa e memórias gravadas em teipe podem ser disseminadas de modo irrestrito, tornando-se, assim, potencialmente imortais, as relíquias físicas sofrem desgaste constante. Embora ainda haja muitos vestígios a serem encontrados, ressuscitados e decifrados, o passado tangível é, em última instância, uma fonte infinita e não renovável, exceto quando o tempo engendra novas relíquias."

É interessante também situar e relacionar a discussão desenvolvida por David Lowenthal acerca do acesso ao conhecimento histórico, com a investigação baseada no paradigma indiciário proposto por Carlo Ginzburg. Entendemos que a utilização da tríade "mitos, emblemas e sinais" na metodologia proposta pelo historiador italiano pode ser associada ao estudo de Lowenthal, uma vez que detalhes, fragmentos e partículas do passado podem ajudar a desvendar e a iluminar os elementos constitutivos da sua totalidade.

Lowenthal sinaliza para esta discussão com base no conhecimento da obra de Freud e suspeitamos que a articulação ginzburguiana da psicanálise freudiana com o ofício detetivesco de Sherlock Holmes e com a perícia crítica da obra de arte falsa e verdadeira, tal como proposta por Morelli, seja bastante pertinente também à interlocução do livro do geógrafo estadunidense.

Edição Final: Guilherme Mazzeo

Clique para acessar conteúdo externo

 

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

O passado é um país estrangeiro (I): uma leitura da obra de David Lowenthal - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

Mais Posts