Revisitando a Semana de Arte Moderna de 1922
GvCult - Uol
22/01/2019 07h10
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Segundo definição canônica, a Semana de 22 constitui o marco inaugural do movimento modernista brasileiro. A sua realização ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo, nas noites dos dias 13, 15 e 17 de fevereiro. O evento abrangeu uma série de atrações, desde a apresentação de danças, a declamação de poesias e a leitura de manifestos, até a exposição de pinturas e esculturas no saguão do teatro. A concepção e a organização couberam a um grupo de jovens artistas e escritores, residentes no Rio de Janeiro e em São Paulo, que se mostravam descontentes com os rumos da arte e das letras no Brasil de então.
Entre os idealizadores e participantes da Semana, destacam-se os polígrafos Mário de Andrade e Oswald de Andrade, os poetas Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida, as pintoras Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, o pintor Di Cavalcanti, o crítico estreante Sérgio Milliet, o compositor Heitor Villa-Lobos, o escultor Victor Brecheret e o historiador Paulo Prado. A estes integrantes, soma-se a figura do renomado escritor Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, que à época contava 53 anos e cujo prestígio intelectual de suas conferências na ABL contribuiu para a valorização do acontecimento.
A primeira noite da Semana, a 13 de fevereiro, atraiu uma grande afluência de público, que reagiu com espanto e repúdio às obras de Brecheret e às telas de Malfatti. Durante o espetáculo, foram proferidas as conferências de Ronald de Carvalho e Graça Aranha, ambas a respeito da dimensão estética do novo conceito de arte que propugnavam. A noite encerrou-se com a audição de três solos de piano de Ernani Braga e com a exibição de três danças africanas executadas por Heitor Villa-Lobos.
A segunda noite do evento, a 15 de fevereiro, despertou hostilidade da plateia, através de vaias, apupos e reações irônicas do público, composto pela seleta elite cultural da cidade. Após o discurso de Menotti Del Picchia, ilustrado com textos de Plínio Salgado e Oswald de Andrade, os presentes menoscabaram os representantes modernistas, por meio da imitação de latidos e miados expressos em tom de pilhéria. Entre os que desferiam gritos e ruídos lancinantes contra os artistas e escritores no palco, estava o então estudante de Direito do Largo do São Francisco, Antônio de Alcântara Machado, cuja adesão ao modernismo se daria anos mais tarde.
O festival prosseguiu com a crítica do poeta Manuel Bandeira à métrica e à rima parnasiana, mediante a recitação do satírico poema Os sapos, em alusão jocosa a Olavo Bilac. No intervalo da apresentação, por seu turno, o líder do movimento, Mário de Andrade, leu nas escadarias do teatro trechos de A escrava que não é Isaura, em referência ao romance oitocentista de Bernardo Guimarães.
A terceira e última noite da Semana, a 17 de fevereiro, transcorreu com a presença de um número menor de espectadores, que se comportavam, porém, de forma mais comedida. O único momento de alvoroço da audiência aconteceu quando o maestro Villa-Lobos entrou em cena com trajes inusitados, vestido casaca e chinelos. Tal irreverência gerou protestos e incompreensões entre os que assistiam ao concerto.
A finalidade precípua dos mentores da Semana foi o combate às formas tradicionais de composição, bem como à herança passadista na literatura e às obras de talhe "academizante", que se cristalizaram no país no final do século XIX e no início do século XX. Inspirados nas correntes de vanguarda da Europa, como o futurismo do italiano Marinetti e o dadaísmo do romeno Tristan Tzara, os modernistas procuravam desbaratar o ideal da arte pura e a posição elitista do intelectual brasileiro na sociedade.
A ruptura iracunda com o cânon literário e com os padrões estilísticos convencionais eram, pois, os imperativos da geração de 22. Em lugar dos modelos estabelecidos, os expoentes da Semana defendiam a liberdade de expressão cultural, a adoção do verso livre, a aproximação do intelectual com os temas ordinários da vida cotidiana e a introdução da oralidade, isto é, da fala própria do ser brasileiro, com vistas a superar os vencilhos impostas pelas regras gramaticais e ortográficas da língua portuguesa.
A compreensão do significado da Semana, ocorrida no primeiro quartel do século XX, passa também pelo exame das transformações de ordem histórica, social e cultural ocorridas no Brasil e no mundo.
Do ponto de vista internacional, a Europa atravessava nos primeiros decênios do século XX um período de acentuada euforia racialista. O desenvolvimento tecnológico e o progresso científico constituíam a pedra de toque do sistema econômico capitalista. Após uma fase de intensas mudanças, o advento da Grande Guerra mundial (1914-1918) e a eclosão da Revolução Russa de 1917 arrefeceram o otimismo irrestrito. Com a destruição dos países beligerantes, esboroaram-se no continente europeu algumas ilusões acerca da onipotência da razão.
No âmbito artístico, a Europa acompanhou as alterações históricas através da irrupção de diversas correntes estéticas. Entre elas, vale mencionar o futurismo, o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo. Tais vanguardas visavam a interpretação da realidade sob novos ângulos e sob novas explorações pictóricas, rítmicas e sinópticas. Por um lado, tendências como o futurismo italiano exaltavam os valores da vida moderna e as conquistas hauridas da técnica. Por outro, vertentes como o dadaísmo francês apregoavam a ausência de perspectivas para a humanidade diante da guerra. Já o surrealismo afiançava a fuga da racionalidade, a penetração no mundo interior e a ênfase no inconsciente.
Em termos nacionais, São Paulo e Rio de Janeiro eram os centros urbanos mais avançados, assistiam a uma incipiente industrialização e à emergência de um proletariado organizado. A classe proletária paulistana ganhava corpo também pelo fato de o país receber uma expressiva massa de imigrantes, especialmente de italianos, que contribuíam para trazer ideologias e a promover greves operárias. Em 1922, ocorre no Rio de Janeiro a rebelião dos 18 do Forte de Copacabana, quando jovens oficiais militares lançam-se contra o governo e indispõem-se contra a estrutura liberal-oligárquica da Primeira República.
No plano artístico do país, é possível identificar os sinais precursores que antecederam a Semana. Já em 1912, dez anos antes do acontecimento, Oswald de Andrade regressa da Europa, após travar contato com os espíritos inovadores que lançavam manifestos em prol do futurismo. Em 1913, o pintor lituano Lasar Segall faz uma mostra de quadros no Brasil.
Em 1917, Oswald e Mário de Andrade conhecem-se no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. No mesmo ano, Anita Malfatti, após estudar na Alemanha, expõe pela segunda vez suas pinturas, drasticamente rejeitadas pelo escritor e editor Monteiro Lobato, em seu polêmico artigo Paranoia ou mistificação? Em 1920, o grupo de modernistas descobre o escultor Victor Brecheret. No ano seguinte, Mário de Andrade publica Paulicéia desvairada e ataca o ambiente literário oficial, mormente os artífices do parnasianismo, como Olavo Bilac.
Após a rumorosa Semana, os seus membros ramificam-se e espargem-se em torno de distintas vertentes de pensamento, no decurso dos anos 1920. Os jovens artistas deram início à primeira fase do modernismo, com a promoção de grupos, revistas, manifestos e viagens ao interior do Brasil. A revista Klaxon foi o primeiro periódico a circular, já no ano de 1922. A seguir, surgiu a revista Estética, no Rio de Janeiro, sob os auspícios de Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda.
Em 1924, Oswald de Andrade redigiu o manifesto Pau-Brasil. Dois anos depois, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado e Monotti Del Picchia criam as bases do movimento Verde-Amarelo, cuja marca era o nacionalismo primitivista e chauvinista. Em 1928, vem a lume a Revista de Antropofagia, dirigida por Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado.
Assim sendo, o "brado coletivo principal", tal como Mário de Andrade classificou a Semana, projetou o movimento modernista sobre o cenário artístico-cultural brasileiro, no decorrer das décadas que se seguiram à sua realização.
Bibliografia consultada:
ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1942.
ANDRADE, Oswald de. Estética e política. São Paulo: Editora Globo, 1992.
ARANHA, Graça. Obra completa. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968.
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo: I – antecedentes da Semana de Arte Moderna. São Paulo: Saraiva, 1958.
NICOLA, José de. Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. São Paulo: Editora Scipione, 1991.
Edição: Guilherme Mazzeo
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.