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Os escritores e os clubes de futebol

GVcult

17/04/2018 06h32

Por    Bernardo Buarque de Hollanda

"Augusto Frederico Schmidt, por exemplo, era torcedor do Botafogo e exerceu cargos no clube."

"Amo o Flamengo como fosse um pedaço da terra onde nasci."

José Lins do Rego

"Era povo. Sentia povo. Respirava povo.

E como povo que era, entrou pelo futebol adentro e foi um fã,

desses de chorar ou rir, de matar ou morrer pelo seu clube."

Carlos Lacerda,

discurso na Câmara dos Deputados (1957)

 

Embora muitos ressaltem as distâncias entre a literatura e o futebol, nem todos os escritores brasileiros foram infensos ao espectro do clubismo. Augusto Frederico Schmidt, por exemplo, era torcedor do Botafogo e exerceu cargos no clube. Além deste poeta e editor, Schmidt foi presidente do Club de Regatas Botafogo, entre 1941 e 1942. Um dos últimos atos de sua gestão foi idealizar a fusão do clube que presidia com o homônimo de futebol, o Botafogo Football Club, criando assim o Botafogo de Futebol e Regatas, como até hoje é conhecido o time da "estrela solitária".

Caso curioso foi o do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto. Torcedor do América do Rio, como Marques Rebelo, destacou-se por fazer um poema ao clube. Sendo uma agremiação modesta da zona norte da cidade, que contava no entanto com a simpatia dos torcedores de outras equipes cariocas, o América foi alvo de uma poesia pouco comum, em que João Cabral faz uma espécie de elogio da derrota e da abnegação do torcedor americano.

Eis os versos, contido no livro Museu de tudo (1975):

 

"O desábito de vencer

Não cria o calo da vitória;

Não dá à vitória o fio cego

Não lhe cansa as molas nervosas.

Guarda-a sem mofo: coisa fresca,

Pele sensível, núbil, nova,

Ácida à língua qual cajá,

Salto do sol no Cais da Aurora"

 

O tom poético-melancólico de Cabral em tudo destoa do ufanismo clubístico do romancista paraibano José Lins do Rego (1901-1957). A título de exemplo, acompanhe-se mais esta crônica publicada no Jornal dos Sports:

 

"Se há um clube nacional, este será o Flamengo, criação do mais legítimo espírito de brasilidade. Flamengos são brasileiros de todas cores, de todas as classes, de todas as posições. Flamengo é o Sr. Eurico Gaspar Dutra, é o Sr. Nereu Ramos, é o Sr. Juracy Magalhães, é o meu rapaz do jornal, é o meu apanhador de bolas no tênis, é o Grande Otelo, é o pintor Portinari, é o Brasil de todos os partidos".

A capacidade de plasmar a pluralidade de características da nação e de condensar os seus polos mais antagônicos fazia do Flamengo, na visão apaixonada de José Lins, um clube diferente. No texto A sucessão no Flamengo, escrito na conjuntura posterior à Segunda Guerra, José Lins explicitava o caráter essencialmente anti-ditatorial do clube: "Somos uma comunidade democrática. Não topamos os ditadores e não nos agradam os que gritam e dão murros na mesa. O clube é cordial. E isto é tudo."      

Seu ufanismo arrefecia quando passava da escala do clube ao da nação. Embora tivesse pendor patriótico, era capaz de analisar a Seleção Brasileira em chave menos exaltada. Na crônica O caráter do brasileiro, José Lins fez as vezes de sociólogo e se posicionou com as seguintes observações conclusivas sobre o Mundial de 1950, em que o time do Brasil foi derrotado pelos uruguaios:

 

"A Copa do Mundo, que se acabou tão melancolicamente, deu-me a impressão de uma experiência amarga, capaz de completar minhas impressões sobre o caráter do nosso povo. Vimos, no Estádio do Maracanã, uma multidão como raramente se tem aglomerado, em manifestações coletivas, no Brasil. Vimos duzentas mil pessoas comprimidas numa praça de esportes, nas reações mais diversas, ora na gritaria das ovações, no barulho das vaias ou no angustioso silêncio da expectativa de um fracasso. Ali estava todo o povo brasileiro, uma média de homens e mulheres de todas as classes sociais. Não era o Brasil de um grupo, de uma região, de uma classe. Era o Brasil em corpo inteiro. Para o observador social, para os que têm o poder de revelar o que há de mais particular nos povos, o campo era o mais propício. Mas para mim as observações começaram antes dos jogos sensacionais. Tive a oportunidade, como dirigente, de travar conhecimento, mais íntimo, com os que procuravam as acomodações, com os que tinham parcela de mando, com os que se sentiam com o direito de crítica, e mais ainda, com a lama das sarjetas, que queria passar pela água mais lustral deste mundo. E me perguntará o leitor: que impressão lhe deixou o brasileiro? Boa ou má? E diria sem medo de cair no exagero: uma boa impressão. Senti que havia povo na Nação – uma nova gente com capacidade de se congregar para uma causa, para uma obra, para os sofrimentos de um fracasso. Fizemos um estádio ciclópico, em menos de dois anos; organizamos um campeonato mundial, o de mais ordem até hoje realizado; formamos uma equipe perfeita de futebol. E, quando o título nos fugiu das mãos, soubemos perder, dando aos turbulentos sul-americanos uma lição de ética esportiva".

Recorde-se que a representação do Brasil através do futebol tinha começado a ser construída doze anos antes, na Copa de França de 1938, quando justamente Leônidas da Silva, jogador do Clube de Regatas do Flamengo, se consagrou e conquistou através do rádio a notoriedade popular. A partir daí, e pelo resto da vida, José Lins tornou-se um fã de carteirinha do futebol, em particular do Flamengo. Seja como torcedor inveterado, como cronista diário ou como dirigente esportivo, o certo é que o romancista teve muitas alegrias – e também algumas tristezas – com este esporte.

Apesar dos eventuais dissabores, sua paixão ficou eternizada no "couro mágico" do atacante Leônidas (Diamante Negro), do meio-campista Fausto (A maravilha negra) e do defensor Domingos da Guia. Foram esses atletas negros que deram ao clube, conforme afirmava Mario Filho, a sua "transfusão de popularidade". Esta se perpetuou nos pés de vários outros craques do time rubro-negro no decorrer dos anos 1940 e 50, graças à floração de Índio, Biguá, Servílio, Rubens, Evaristo, Zagalo, Benítez, Esquerdinha, Babá, Dida, entre tantos outros jogadores de origem popular, procedentes do Nordeste, do Sul e dos rincões mais longínquos do Brasil.

De José Lins do Rego, e sua paixão pelo Flamengo, pode-se dizer o mesmo que a canção de Wilson Baptista, Samba rubro-negro, composta nos anos 50, cujo refrão estribilha: "Pode chover,/ pode o sol me queimar/Que eu vou pra ver,/a Charanga do Jaime tocar/― Flamengo, Flamengo,/ sua glória é lutar/Quando o Mengo perde,/ Eu não quero almoçar, eu não quero jantar…"

Edição      Enrique Shiguematu

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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