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Galeria Claudia Andujar

GVcult

10/07/2017 06h32

Síntese da confluência de linguagem, estilo e arquitetura na arte contemporânea

 

Alexandre Handfas e Louise Crivelenti

A área verde do Instituto Inhotim e a distribuição das obras em seu espaço são intrigantes. Ao caminhar pelas rotas arborizadas, repentinamente nos deparamos com imensas galerias de arte contemporânea arquitetonicamente imponentes. A de Andujar, porém, fica escondida ao final de uma trilha e guarda um aspecto de mistério. Foi a primeira vez que nos deparamos em Inhotim com tijolos aparentes de demolição. Transmitiam um ar robusto e de certa brutalidade. Perto da porta de entrada, o visitante se depara com um corredor coberto por um pergolado de madeira. Nele, a luz do sol incide sobre os relevos da parede, causando uma sobreposição de texturas e cores. O contraste de sensações da passagem da área externa para a área interna é grande. De uma arquitetura robusta, passa-se para uma arquitetura que nos parece modernista, com uma palheta de cores rude, na qual a luminosidade natural permanece do lado de fora.

A única opção do visitante para continuar a trajetória é uma porta que descortina em uma outra sala: desta vez muito mais ampla, com uma geometria espacial diferente das demais e relativamente confusa, pois o visitante não sabe exatamente que caminho percorrer para ver as obras. Este espaço é conectado com as outras salas, por um corredor belo com paredes de vidro e tijolos. É quase um respiro da intensidade das fotografias que retratam os rituais indígenas na sala anterior e um preparo para as que ainda estão por vir. A relação visitante-espaço-obra é pautada por uma certa confusão a respeito da compreensão da dimensão do todo.

Para nós, leigos a respeito do trabalho de Cláudia Andujar, houve dificuldade em identificar à primeira vista que o trabalho exposto era tão somente focado nos indígenas, pois nenhum elemento na arquitetura do local remetia à cultura dos Yanomami. Assim, observamos que, da mesma forma que os índios no Brasil não tinham dimensão das razões pelas quais os portugueses aqui chegaram, a galeria se propõe a fazer com que o visitante não tenha essa noção geral do que observará no decorrer da visita. A questão indígena no Brasil é grave e urgente, mas mesmo assim fica escondida sob as estruturas da sociedade contemporânea brasileira. A galeria, por fim, com seu exterior rígido e imponente, guarda em si retratos reais e frágeis de um povo que vive no limiar entre a proteção e a marginalização.

A fotógrafa Cláudia Andujar nasceu em Neuchâtel, na Suíça, no ano de 1931 e migrou para os Estados Unidos após perder praticamente toda sua família durante o Holocausto. Já adulta, veio para o Brasil, ao encontro de sua mãe, que aqui estava e começa a utilizar a fotografia como uma maneira de entrar em contato com as novas comunidades que adentrava. Andujar passa a publicar suas fotos em revistas brasileiras e estrangeiras e vai conhecer os índios brasileiros da tribo Karajá. A trabalho, para a revista Realidade, conhece a Amazônia brasileira e as tribos indígenas que lá habitam, como os Yanomami. Decide sair de São Paulo e ir morar em uma região próxima à tribo, onde realiza diversos ensaios fotográficos. Ao ser expulsa da região, devido à Lei de Segurança Nacional, vigente no período militar, volta para São Paulo e inicia uma fase de ativismo intenso, em defesa da demarcação e proteção das terras daquela comunidade.

Não é possível afirmar que a galeria de Andujar no Instituto Inhotim possui um estilo arquitetônico definido, pois pertence a um movimento de arquitetura contemporânea. É também composto de traços do estilo brutalista, já que a construção deixa expostos os materiais e métodos construtivos, em uma tentativa de desmistificar o conteúdo artístico lá exposto. Uma galeria que expõe os seus materiais e métodos de construção fortifica a ideia de que suas obras possuem forte relação com a realidade, e não são separados dela. Pode-se fazer aqui uma equiparação com a dramaturgia do alemão Bertold Brecht: esse tinha a intenção de revelar em suas peças as ferramentas artísticas que a compunham; queria deixar claro aos espectadores que aquilo que estavam apreciando não era a realidade, eram pessoas interpretando, de forma artificial, a vida real.

Além disso, é possível perceber a presença de diversos aspectos da construção e da arquitetura da galeria que demonstram a forte presença da marca do Holocausto. A primeira semelhança que vem à tona diz respeito aos tijolos aparentes que constituem a parte externa da construção que muito lembram os tijolos pelos quais se sustentavam os campos de concentração nazistas. Ao mesmo tempo, a construção da galeria possui elementos mais discretos e elementos de imponência, como o alto pé direito do local. Uma situação parecida pode ser conferida no campo de concentração de Auschwitz, pois este era um local que, ao mesmo tempo em que não se destacava na região e parecia um simples conjunto de galpões, apresentava um aspecto bastante imponente e tenebroso.

Outro aspecto relevante a ser mencionado é o de que há um cuidado muito grande na disposição das salas e dos espaços internos da galeria. É possível perceber que existem três blocos construídos intercalados por espaços externos que ficam nos jardins do parque. Percebe-se então uma forte ligação entre a natureza e a obra de arte, relação essa também presente nas imagens de Claudia Andujar. Essa conexão é tão forte que, durante a inauguração do espaço, os índios Yanomami que estavam presentes nomearam a galeria de Maxita Yano, em sua língua, "casa de barro", demonstrando a forte percepção do potencial de interconexões entre arquitetura, natureza e paisagem.

A arquitetura da galeria de Andujar potencializa a abertura de um leque de interpretações e de análises, principalmente pela falta de estilos pré-determinados e uma espécie de mão livre do desenho do local, da disposição das imagens e dos espaços. Essa possibilidade de não seguir padrões estabelecidos, ao contrário do que ocorria na arquitetura modernista e bauhausiana, por exemplo, é característica da contemporaneidade, como afirma Luiz Camillo Osorio em seu Arte contemporânea brasileira: multiplicidade poética e inserção internacional. Neste movimento, não há mais um norte de centralização e padronização que guie as produções artísticas e o propósito para a arte é livre e variável.

Essa multiplicidade de linguagens é presente tanto na obra de Andujar quanto na sua galeria em Inhotim, em que a mistura de estilos diversos e as diferentes interpretações suscitadas por essa não padronização arquitetônica é marcante. Como afirma Osório (2011): "Não há mais um Greenwich poético regulando o relógio do contemporâneo, assim como não há mais uma topologia artística diferenciando um centro criativo das muitas periferias reprodutivas".

Em relação à arquitetura da galeria, os pontos positivos são muitos. A beleza da construção é simplesmente estonteante, sendo que sua apreciação é um evento à parte. Também é relevante a harmonia entre a artista, o curador e os arquitetos, pois é perceptível uma organização prévia do espaço, que se estrutura por meio da preocupação com a trajetória física, emocional e intelectual a ser percorrida pelo visitante dentro da galeria. A estrutura espacial e as imagens ali expostas integram-se à exuberante área verde no entorno. As aberturas para áreas exteriores estão estrategicamente colocadas, permitindo um momento de alívio para que o visitante seja capaz de apreciar com profundidade as imagens ali expostas, muitas vezes chocantes e pesadas. Porém, como o parque recebe muitos visitantes que não estão a par da realidade indígena, certas fotografias podem reduzir a cultura indígena a um conjunto de estereótipos. Ou seja, se o visitante não tiver um olhar analítico e crítico para aquilo que observa, o impacto das imagens de Andujar pode ser negativo no sentido de reduzir o significado da amplitude cultural dos Yanomami, conforme acentuam Pierre Bourdieu e Alain Darbel, no capítulo "Obras culturais e disposição culta", do livro O amor pela arte.

Por fim, é possível afirmar que a obra de Claudia Andujar e sua galeria no Instituto Inhotim são muito relevantes pois, de alguma forma, representam a trajetória da autora e assim trazem uma linha do tempo não somente a respeito do Brasil, mas de caráter universal: características arquitetônicas da galeria revivem as experiências totalitárias do século XX e a fotografia de Andujar apresenta um modelo de exposição do processo de entrelaçamento simbólico de uma estrangeira com um novo país. O tema de suas imagens representa a interpretação de uma realidade extremamente importante do Brasil, a da questão indígena e da proteção de seu território e cultura. É, neste sentido, um conjunto artístico que tende à completude, podendo, a cada diferente olhar, suscitar novas visões.

 

Edição: Enrique Shiguematu

Ensaio apresentado à disciplina Sociedade & representação: o Brasil através das artes, ministrado pelo professor Bernardo Buarque, para alunos de primeiro período de Administração Pública, da EAESP/FGV, São Paulo

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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