Topo

Cicatrizes: as feridas do passado vivas no presente

GVcult

06/07/2017 05h53

Ensaio sobre a Galeria Miguel Rio Branco

Ionatan Gottfried e Isabel Jeha

Silêncio. Musa… chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto!…

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança…

"Navio Negreiro", Castro Alves, 1868

Dor. Ódio. Amor. Angústia. Fascínio. Aflição. Medo. Sufoco. Desespero. Esperança. Tristeza. Vulnerabilidade. Movimento. Amargura. Desconsolo. Fluidez. Aprisionamento. Luz. Escuridão. São muitos os paradoxos e os sentimentos despertados ao conhecer a galeria Miguel Rio Branco, em Inhotim. Por meio de fotografias, montagens com pinturas, esculturas e instalações audiovisuais, apresenta-se um olhar crítico à sociedade, abordando temas como a exclusão e marginalização de negros, indígenas, mulheres e deficientes físicos. Explorando contrastes entre cores intensas, o artista mistura os mais etéreos sonhos e fantasias à mais crua e dura realidade, e os que a observam absorvem e internalizam a importância e a seriedade das questões por ele tratadas.

Antes de entrar em detalhes sobre o autor e a galeria, faz-se necessário compreender o que é o Instituto Inhotim, palco de nossa análise. Com o objetivo de poder contribuir para a exposição da arte contemporânea para a população, o empresário siderúrgico Bernardo de Mello Paz decidiu transformar, em 2006, seu terreno de 97 hectares em um grande acervo a céu aberto. Localizado no município de Brumadinho, em Minas Gerais, Inhotim é considerado um dos maiores museus de arte contemporânea do mundo. Desde 2010, o Instituto tornou-se uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), passando a ser, ademais de doações, apoiado em parte pelo governo federal.

Para além do acelerado crescimento econômico que o museu trouxe para Brumadinho, sobretudo pelo turismo, observa-se que Inhotim também trouxe consequências negativas, justamente por criar um conflito com os moradores da cidade no que diz respeito ao pertencimento do Instituto com o município. Somado a isso, está prevista a construção de um novo hotel dentro do museu para o próximo ano, o que pode vir a isolar ainda mais a relação um tanto quanto conturbada entre Inhotim e Brumadinho.

Ao aproximar-se do parque, é possível notar sua beleza natural. Entre uma fauna e flora diversificadas e lagos exuberantes, percorrer Inhotim é sentir-se em um ambiente refugiado de qualquer cidade cosmopolita. Dividido entre galerias, jardins temáticos e obras avulsas, o Instituto é capaz de atrair a atenção do visitante não só através da imponência das obras, mas também por meio das grandiosas construções arquitetônicas que as abrigam e embelezam ainda mais, integrando-se à arte contemporânea. Uma destas que mais atrai a atenção é a de Miguel Rio Branco, cerne deste ensaio.

Miguel da Silva Paranhos do Rio Branco nasceu em 1946, na Espanha, e passou grande parte de sua vida no Brasil. Filho de diplomata brasileiro, é também bisneto do barão do Rio Branco, que ganhou destaque na história do país ao ser o responsável pela consolidação das fronteiras nacionais no início do século XX. Decidido a mergulhar no mundo das artes, Miguel Rio Branco estudou fotografia no New York Institute of Photography, no ano de 1966. A partir de então, viajando entre a Europa e a América, começou a criar um repertório que inclui pinturas, fotografias e obras de cinema, sendo reconhecido nacionalmente e em âmbito internacional, a exemplo do Grande Prêmio da Primeira Trienal de Fotografia do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Prêmio Kodak de la Critique Photographie. Suas obras podem ser encontradas em grandes cidades mundiais, como Paris e Nova Iorque, além de que, desde 2013, reúne algumas de suas produções dos últimos 30 anos em uma galeria fixa no Instituto Inhotim.

A arquitetura externa do Pavilhão Miguel Rio Branco é a primeira coisa que desperta interesse na exposição do artista. Em meio a uma ladeira rodeada por inúmeras árvores, surge o vão em um robusto formato de barco, de coloração acinzentada e suavemente inclinado. A embarcação suspensa gera uma explosão de dúvidas e sensações no espectador, podendo surgir inúmeras explanações sobre a tão atraente arquitetura da galeria. Duas relações ganham mais destaque. Muitos afirmam que a ideia do barco traz à tona a questão do movimento, de modo que as obras ali contidas estejam associadas a um projeto de contestação e mudança da sociedade. Em outra visão, pode-se dizer que o pavilhão remete a um navio negreiro, embarcação que trazia os africanos para o Brasil no período da escravidão. Destarte, o repertório de Miguel Rio Branco está diretamente relacionado a uma série de enfrentamentos sociais do Brasil, com ênfase para as populações marginalizadas, sendo essa problemática originária de nosso passado escravocrata.

Mesclando técnicas de luz e cor, o artista explora em suas fotos os contrastes cromáticos, através de diferentes texturas e jogos de espelhamentos. Apresentando grande variedade de fotografias, painéis e filmes, a Galeria Miguel Rio Branco retrata majoritariamente a Bahia, a primeira capital da nação brasileira. Dentre as diversas obras, todas com uma temática questionadora e um encanto imensurável, daremos destaque a quatro delas: a Série Maciel (1979), Diálogos com Amaú (1983), Entre os olhos o deserto (1997) e Tubarões de seda (2006).

 

Dentro da galeria, a experiência se inicia com as fotos da Série Maciel, de 1979, na qual o artista buscou retratar a realidade do Pelourinho, em Salvador, com foco na situação de seus habitantes e na questão da prostituição. As 34 imagens da série contam histórias inundadas por erotismo e violência nas ruínas, e a imersão nessa atmosfera traz um contraste entre a aproximação e o distanciamento do espectador. Este se depara com fotografias de uma autenticidade que dificilmente teria visto previamente, que retratam condições de vida tão absolutamente diferentes das suas. A experiência o faz lembrar e constatar as espessas paredes da bolha social em que se encontra, ao mesmo tempo em que tem a oportunidade de se aproximar dessa outra realidade.

Rio Branco constrói esse cenário de forma a despertar um profundo sentimento de empatia nos que nele adentram. O espectador é progressivamente tomado por um instinto de proteção, uma vontade e uma urgência de tirar as mulheres retratadas da situação precária e violenta dos prostíbulos. Enorme parte da angústia que se sente é oriunda da terrível sensação de impotência pela impossibilidade de transformar a realidade dessas pessoas, em todos os espectros temporais. O passado já foi, e séculos de escravidão estruturaram a sociedade brasileira deixando como herança um país – além de patriarcal e misógino -, extremamente desigual e racista, de forma que permanece sendo de enorme dificuldade pensar e aplicar soluções para tratar desses problemas, tão enraizados na sociedade. Não é à toa que o que se vê nas imagens são corpos negros e femininos, marcados por severas cicatrizes e por olhares intensos e distantes, de quem não vislumbra outra alternativa de vida.

 

Ao subir as escadas do pavilhão, o espectador se depara com três telas mostrando a imagem de um indígena, enquanto escuta-se, ao fundo, sons repetitivos de um ritual, que perturbam constantemente. Em Diálogos Com Amaú, Rio Branco traz novamente o aspecto provocador e instigante que caracteriza sua exposição. Tratando-se de uma instalação audiovisual, o choque de realidade é potencializado ao entender quem foi, de fato, Amaú: índio surdo e mudo, fora abandonado por sua tribo em razão de sua deficiência e negado por um padre, a posteriori. Alternam-se nas projeções fotos das prostitutas da Série Maciel com as imagens do menino, colocando-se em pauta a vulnerabilidade humana através de Amaú. A vivência em seu ambiente local, a rejeição pela família e a busca por uma vida mais digna são pontos que causam incômodo no espectador ao sair desse ambiente permeado de conflitos. A metros de distância dessa obra, encontram-se os Tubarões de seda (2006), que consiste em imagens impressas em tecidos suspensos. O observador é convidado a percorrer a obra não apenas com os olhos, mas também com o corpo, e o aspecto ameaçador das imagens se contrapõe à leveza da seda, associando sensações de prazer e medo.

Prosseguindo no andar superior da galeria, a exposição Entre os olhos e o deserto atrai bastante a atenção. Em uma instalação composta por três projetores, mais de 400 imagens se sucedem de forma a gerar um ritmo quase que hipnótico. As fotografias, realizadas em 1997 na fronteira do México com os Estados Unidos, intercalam retratos de olhares e registros de deserto, ruínas e cenas urbanas. Constrói-se uma contraposição entre os elementos da natureza, mesclando os olhares brilhantes, ainda que cansados, e a pele marcada pelo tempo, com o desgaste das terras secas que algum dia já foram mar.

Também compõe a obra uma montagem que reúne elementos de metais, que remetem a sobras de construções, do produto do trabalho humano. O efeito gerado causa uma sensação dúbia de estranhamento na pessoa que está observando, de modo que a constante mudança das fotografias lhe atém o olhar fixo aos diversos elementos que estão representados dentro da instalação. As ruínas dos corpos e das construções trazem, relacionadas a isso, reflexões acerca do ser humano como elemento constitutivo da natureza, que, entretanto, vem tendo ações nos últimos séculos que a está destruindo e, portanto, destruindo também a ele mesmo.  

 

É perceptível, assim, com a análise das obras de Rio Branco em sua galeria de Inhotim, a intencionalidade crítica que visa transmitir através da arte. O crítico Pierre Bordieu, em seu texto "O Amor pela Arte", ressalta que existe um código artístico que desperta cada autor. Tal código assume um caráter de representação artística individual daquele que produz o trabalho, sendo este, sobretudo, baseado na realidade social do artista. Dessa forma, o contexto brasileiro em que Miguel Rio Branco se deparou quando chegou ao país lhe atraiu um interesse que fez com que criasse um código que buscasse denunciar os problemas sociais de seu povo. A genialidade de suas fotografias e instalações é de tamanha magnitude que cada espectador recebe alguma mensagem que lhe desperta inquietude. Como afirma Bordieu, "A história dos instrumentos de percepção da obra é o complemento indispensável (…) na medida em que toda obra é, de alguma forma, elaborada duas vezes: pelo criador e pelo espectador, ou melhor ainda, pela sociedade a que pertence o espectador."

Destacado o código artístico de Rio Branco, gera-se um contraponto. Qual é o ganho de se haver obras de cunho crítico social em um museu que, devido às suas características, acaba sendo, de certa forma, um ambiente exclusivo para uma ínfima parcela da sociedade? Ou ainda: o protagonista dessa exposição não vive as realidades denunciadas, apenas propaga aquelas situações. Seria uma tarefa legítima? Os questionamentos acerca do Instituto como um espaço excludente para grandes setores da população brasileira e, além disso, o debate sobre o lugar de fala do artista sempre devem estar colocados em cheque. Afinal, para além das devidas obras como elementos críticos, há de se fazer uma análise sobre o modo em que a arte está sendo divulgada e retratada.

Em nossa opinião, o saldo é imensamente positivo. Sem dúvida, Rio Branco é capaz despertar, através de um belíssimo conjunto artístico, uma reflexão sobre as vantagens que temos no dia a dia, inacessíveis a outras pessoas que, ainda que tão próximas de nós, vivem em situações absolutamente diferentes. A formação da sociedade brasileira com base na desigualdade, fruto da construção histórica de nosso país e do legado da escravidão, deixou uma série de feridas que permanecem manifestas no presente. O papel da arte é, justamente, retratar e denunciar os dramas da realidade para que nos emocionemos e reflitamos sobre eles. O modo de conseguir cicatrizar essas feridas é conseguir, aos poucos, ir para além do plano empático e atingir um plano ativo. A galeria Rio Branco internaliza-se nas pessoas de tal modo que as críticas ali transmitidas servem de inspiração, sobretudo para nós, como futuros administradores públicos, para que no futuro possamos pensar em ações e políticas públicas visando melhorar a condição de vida daqueles que, historicamente, foram excluídos da lógica de cuidado e atenção por parte do Estado e da própria sociedade brasileira.

Edição: Enrique Shiguematu

Ensaio apresentado à disciplina Sociedade & representação: o Brasil através das artes, ministrado pelo professor Bernardo Buarque, para alunos de primeiro período de Administração Pública, da EAESP/FGV, São Paulo

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Cicatrizes: as feridas do passado vivas no presente - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

Mais Posts