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As Cosmococas de Hélio Oiticica

GVcult

22/07/2016 06h54

Beatriz Ramos

Helena Allegro

"O conceito de supra-sensorial é decisivo para entender o objetivo da obra de Oiticica."

Após seguir por um caminho tortuoso e subir um pequeno morro, avista-se a galeria Cosmococas, no Museu de Arte Contemporânea de Inhotim. Ao observá-la de fora, é possível perceber uma distinção entre o ambiente exterior e o prédio: o primeiro exclama cores vivas, o verde e a natureza, enquanto a arquitetura do segundo se mantém extremamente geométrica, com cores frias e com um toque quase futurista. Já se estabelece assim que o visitante está entrando em uma viagem…

Entrar na galeria e tirar os sapatos cria uma nova cisão com o ambiente de fora. Os pés descalços dirigem-se até o saguão da galeria, onde se percebem cinco cortinas pretas que conduzem a caminhos aparentemente iguais. Ledo engano: cada um guia para uma sala extremamente diferente.

Há um ambiente com diversos colchões azuis, em que o visitante é convidado a lixar suas unhas enquanto vê projeções do rosto do cineasta Luis Buñuel na capa da New York Times Magazine (CC1 Trashicapes). Outra sala tem um chão acolchoado e dispõe de diversas almofadas em formatos geométricos, ao mesmo tempo em que projeta a capa do livro de Martin Heidegger "What Is a Thing?" (CC2 ONOBJECT). O terceiro espaço acolhe o visitante com projeções de Marilyn Monroe maquiada com cocaína, em um ambiente com balões coloridos espalhados por um chão disforme (CC3 Mayleryn). Em seguida, encontra-se uma piscina, contornada por colchões, que reflete as projeções na parede de discos do John Cage (CC4 Nocagions). Por fim, há uma sala preenchida por redes, em que o visitante acessa clássicos de Jimi Hendrix, intercalados por trechos de músicas tradicionais brasileiras (CC5 Hendrix-War).

Um fio condutor entre as salas pode ser percebido se analisarmos o uso conjunto da projeção de vídeos nas paredes com a interação com o ambiente. Elas transformam o uso do espaço e também a pessoa que visita a obra. Além de sermos observadores, ganha-se um papel central de agentes atuantes na própria obra, experienciando de formas inovadoras uma obra de arte.

As Cosmococas – programa in progress – foram criadas por Helio Oiticica, em parceria com o cineasta Neville D'Almeida, para serem não apenas uma experiência, mas uma obra supra-sensorial. No livro "Aspiro ao grande labirinto" (1986), o artista fala que se trata da:

"tentativa de criar, por proposições cada vez mais abertas, exercícios criativos, prescindindo mesmo do objeto […] São dirigidos aos sentidos, para através deles, da "percepção total", levar o indivíduo a uma "supra-sensação", ao dilatamento das suas capacidades sensoriais habituais, para a descoberta de seu centro criativo interior." (OITICICA, 1986, p.104)

O conceito de supra-sensorial é decisivo para entender o objetivo da obra de Oiticica. O artista, que viveu grande parte da sua vida nos Estados Unidos, dedicou-se desde o início de sua carreira a explorar a quebra com a arte formal, a partir do movimento neoconcreto. Para o artista era importante a alta interação do espectador com a arte em sua essência: ela não seria uma arte analítica e racionalizada e sim uma experiência que tenha como objetivo não o pensamento, mas principalmente a sensação. Uma obra que busca ser supra-sensorial, ao invés de se encaixar em uma arte que reproduz uma ideologia prévia, está muito mais relacionada ao estado em que a obra se encontra naquele momento.

As Cosmococas, idealizadas em 1973, talvez sejam o ápice dessa concepção artística. Partindo de seu nome, muito pensam que a finalidade do espaço era transmitir a sensação alucinógena a partir do uso de entorpecentes, como a cocaína. Além disto, a outra parte do nome remete à palavra "cosmos", o que faz alusão tanto a uma viagem sensorial para outro mundo quanto à ideia de que cada sala pode ser considerada um universo de sensações por si só. O nome pode servir como pressuposto importante para compreender a intenção dos artistas. Mas uma análise da obra pode ser guiada por outros caminhos.

Podemos, primeiramente, entender a obra de um ponto de vista bakhtiniano. De acordo com a teoria da comunicação de Mikhail Bakhtin, todo discurso é constituído dialogicamente, ou seja, se constrói em relação a outro discurso, por negação ou por diferenciação. Isto é percebido em todo o contexto de arte contemporânea em que se insere a obra de Oiticica, criando uma relação de oposição aos meios tradicionais das artes plásticas.

As Cosmococas quebram com a tradição artística na medida em que a inserção do visitante não só como contemplador, mas como peça essencial na completude da obra de arte é uma transformação radical na concepção de arte. As galerias são uma "tentativa de criar uma arte que abandonasse a atitude contemplativa da tradição e que se abrisse para a vida" (NAVES, 2011, p. 25). Neste sentido, contrapõem-se dialogicamente à tradição artística vigente.

Outra análise possível do que Oiticica busca em sua instalação é a partir da visão que o crítico E. H. Gombrich explora em seu livro "A História da Arte". O autor interroga o que é e como deve ser interpretada uma obra de arte. Segundo ele, esta é uma atividade feita para e por humanos, sendo assim manipulável e interativa. Ao citar exemplos de grandes clássicos da pintura, o autor ressalta a ideia de que o que temos hoje como algo superior, à parte, como exceção, em museus renomados da Europa, antes era uma mercadoria, um produto a ser vendido e trocado pela elite aristocrática.

Sendo assim, um quadro de um renascentista famoso não tinha a função que tem hoje, de ser contemplada e de transmitir uma história. Era antes uma peça de decoração, que exigia o envolvimento e o interesse de um comprador para sua existência. Hoje, porém, tem-se como arte aquilo que transforma o espectador em agente passivo – aquele que apenas associa o que vê ao que já sabe sobre o mesmo. Em tom crítico, afirma:

"Quando veem uma obra de arte não param para olhá-la, preferindo sondar a memória em busca de um rótulo apropriado. Podem ter ouvido que Rembrandt era famoso por seu chiaroscuro […], de maneira que meneiam sabiamente a cabeça quando veem um Rembrandt, murumuram 'maravilhoso chiaroscuro' e passam logo ao quadro seguinte." (GOMBRICH, 1993, p.37)

Entende-se, portanto, que a ruptura com esse modelo de interação com a arte é o que norteia a produção de Oiticica. O artista tira o visitante das Cosmococas de sua zona de conforto. Esta permite que apenas o conhecimento e a racionalização sejam suficientes para a experiência da obra. Por isto, obriga o espectador a fazer descobertas, a explorar, a fazer parte daquilo que vê. Seja deitando na rede ao som de Hendrix ou entrando na piscina gelada, deve usar todos os seus sentidos para compreender seu significado.

Essa ruptura no campo das artes está ligada ao que Luís Camillo Osorio descreve sobre a geração dos anos 1970. O autor explora a nova sociedade que surge após a terceira revolução industrial, a geração do movimento punk: eram indivíduos que, negando qualquer modelo já proposto para se mudar a sociedade abandonam essa perspectiva do futuro como o objetivo maior das vidas, mas enxergam o presente como "a instância temporal a ser conquistada e vivida" (OSORIO, 2011, p. 59). Sendo assim, fica clara tal influência na arte de Hélio Oiticica. Vivendo nos EUA nesse período, o artista parte do pressuposto de que o importante é o presente, de que o importante é o espectador que irá experienciar e imergir em sua obra, sem se preocupar com as tradições artísticas vigentes nem com sua história.

Essa análise permite perceber que a importância da imersão e da interatividade da obra de Oiticica e D'Almeida não está ligada apenas a uma ruptura técnica para provocar mudanças artísticas: é uma transformação da forma como se enxerga a obra de arte. Agora, esta se torna dependente não do conhecimento sobre história da arte dos visitantes, mas da experiência que cada um traz consigo mesmo. O que a obra transmite ao visitante é determinado de acordo com a subjetividade de cada pessoa; cada um atribui um sentido de acordo com a sua própria vivência, independente da erudição e do conhecimento teórico prévio.

Esse é um caminho importante para uma arte mais democrática: o conhecimento acadêmico deixa de ser requisito para o entendimento da obra. Em um país tão desigual como o Brasil, é interessante essa "pureza" da arte contemporânea. Entendida como um fim em si mesma, ela permite um acesso mais amplo, pois basta a bagagem individual para compor o significado subjetivo de uma obra. Desta forma, um indivíduo sem escolaridade consegue usufruir, por exemplo, da Cosmococa, pois é dotado daquilo exigido para tanto: seus sentidos, sua experiência e sua própria linha de raciocínio. Basta-lhe unir os elementos audiovisuais aos sensoriais e sua experiência estará completa.

Há, todavia, limites a essa democratização. Além da dificuldade de acesso ao Instituto e dos custos da viagem, entender arte como algo diferente do que é divulgado nas aulas de História das escolas do ciclo básico – a produção cultural do Renascimento ao Modernismo – é extremamente difícil para quem não teve incentivo a um envolvimento autônomo com o estudo da Arte. Mantém-se uma apreciação da arte seletiva e apenas possibilitada de fato para uma elite detentora dos meios de produção e de compreensão da cultura.

Por fim, constata-se que as Cosmococas representam diversos desafios à arte brasileira. A tensão entre quebra com a tradição cultural e a exploração de novas experiências é importantíssima para uma ressignificação do próprio conceito de obra de arte. Tal conceito é mais inclusivo e coloca o espectador no seu centro. A ele é concebido o papel de agente, além de contemplador; a ele, é concedida a missão de compartilhar com o artista a obra de arte. Esta é, de fato, concluída com um último ingrediente: a sensibilidade de cada um.

Edição: Enrique Shiguematu

Beatriz Ramos e Helena Allegro são alunas de primeiro período de graduação do curso de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas (São Paulo, Turma 8, FGV-SP). Este trabalho foi realizado na disciplina "Sociedade & Representação: o Brasil através das Artes", ministrada pelo professor Bernardo Buarque em 2016.1, após visita ao Instituto Inhotim – Centro de Arte Contemporânea, na cidade de Brumadinho, Minas Gerais

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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