Riacho Doce: um romance atípico de José Lins do Rego?
GVcult
12/08/2015 00h06
Por Bernardo Buarque de Hollanda
Publicado originalmente em 1939, Riacho Doce marca um apogeu no conjunto da produção literária de José Lins do Rego. Trata-se da oitava e consecutiva obra ficcional do autor, após o cumprimento de uma ininterrupta sequência de publicações – um romance por ano – desde que apareceu com Menino de engenho, em 1932. Feita a arrancada de fôlego, já senhor de uma volumosa obra, José Lins tornaria sua ficção mais espaçada com o passar do tempo, aguardando a maturação necessária para ressurgir, de modo fulgurante, como em Fogo morto (1943).
Tal como havia feito nos dois romances anteriores – Pureza (1937) e Pedra Bonita (1938) – Riacho Doce é também uma busca por alternativas à paisagem da região natal, a Zona da Mata canavieira, a que o autor ficara associado com a consumação do seu Ciclo da Cana-de-Açúcar. Sempre sensível à crítica – o escritor era capaz de introduzir mais diálogos num romance, desde que um especialista observasse a sua necessidade na obra anterior, como de fato ocorreu com Álvaro Lins, em sua coluna literária no Correio da Manhã – José Lins leva às últimas consequências a determinação em propor novos ambientes para seus enredos. No fundo, era como se ele quisesse testar os próprios limites inventivos e mostrar aos críticos a autonomia de sua imaginação, capaz de extrapolar as fronteiras geográficas e imaginárias da infância.
Dessa feita, a ousadia o leva a paragens inusitadas. Na primeira parte do romance, o pano de fundo da narrativa se transplanta para um burgo provinciano da longínqua Suécia, país que o autor conheceria somente nos anos 1950, contrariando a visão geral segundo a qual apenas escrevia amparado na memória e na experiência. Se as gélidas e protestantes terras da Escandinávia são o cenário com que principia o romance, nas lonjuras onde ressoam as notas musicais de Bach, Beethoven, Chopin e Schumann, logo o autor nos reenvia à quentura ensolarada dos trópicos, "aos eflúvios da luxúria tropical", com seus cantadores de coco, seus sambas, seus reisados, suas cheganças, seus pastoris.
Na segunda e principal parte, José Lins situa o desenrolar da trama na praia de uma até então pacata cidade do litoral de Alagoas, homônima ao título do livro, esta sim que o autor conhecera na época de sua residência em Maceió, entre os anos 1920 e 1930.
Riacho Doce é ainda algo mais do que um experimento extraordinário ou a culminância de uma etapa criativa na trajetória do escritor. Pode ser lido também como a condensação literária de temas que marcaram o debate social brasileiro no correr da década de 1930 e que estariam por convulsionar o mundo no decênio seguinte. Destes temas, é possível elencar um par: raça e nacionalidade.
Ora, o livro é lançado às vésperas da eclosão da Segunda Guerra mundial, na iminência do que viria a ser um catastrófico conflito deflagrado por países da Europa, na sanha de impor ao mundo a hegemonia de uma raça ariana pura e supostamente superior. Em contrapartida, era o Brasil à época o laboratório de um debate que procurava, ao menos na superfície, inverter os polos da relação conceitual entre raça e cultura, passando a valorizar o segundo em detrimento do primeiro. Esta inversão culminava com o famoso elogio da mestiçagem na história nacional, tal como fizera do modo pioneiro um dos amigos mais íntimos de José Lins do Rego ao longo da vida, o autor de Casa-Grande & senzala (1933), Gilberto Freyre.
Nesse contexto, o que dizer do arrebatamento amoroso de uma heroína de origem nórdica, no frescor dos seus vinte e poucos anos, na brancura de quem herdou as tranças louras da mãe, por um caiçara cor de bronze, com seus olhos castanho-escuros e seus cabelos pretos anelados, capaz de seduzi-la com suas doces cantigas de amor, com seu enleio praiano-mestiço, em meio a uma ambiência quase mítica da costa atlântica do Brasil?
E o que dizer da temática do petróleo, que se tornaria a pedra de toque do nacionalismo brasileiro nos anos 40 e 50, personificada no romance na figura de "estrangeiros de cabelos loiros e olhos azuis", técnicos em engenharia enviados por uma agência alemã com o objetivo tão-somente de extrair o "jorro milagroso", aquele que seria um dos recursos naturais mais valiosos do mundo, na segunda metade do século XX?
Deixemos em aberto essas perguntas, apenas a título de contextualização histórica, pois o romance em mãos nada mais permite do que lançá-las – aliás, não há talvez autor que tenha declarado maior aversão a romances ditos engajados ou sociais como José Lins do Rego, em época, lembre-se, plena de engajamentos e de textos missionários. Por isto, apenas de uma maneira muito sutil é possível perceber a introdução do tema racial, como, por exemplo, no segredo sobre as origens judias da professora Ester, protagonista da primeira parte do romance, que emigra, um tanto forçosamente, para a Argentina.
Junto aos referentes externos, deixemos ao leitor também a possibilidade de acompanhar a dissecação dos tipos psicológicos de José Lins, feitos com cada vez mais profundidade introspectiva e sempre conjugados à força indômita da natureza – "fúria de furacão" –, que faz emergir os arquétipos primordiais da terra, do ar, da água e do fogo. Assim, a moldura e o conteúdo ficcional de Riacho Doce oferecem muito mais do que um simples deslocamento no espaço em relação às obras precedentes, não tendo sentido rotulá-lo sob a inócua categoria de "romance independente".
Na presente obra, o aprofundamento dos conflitos e dos mistérios da alma humana – a liberdade e a servidão, a audácia e a covardia, o amor e o ódio, a loucura e a solidão – é empreendido com tal sucesso que poderíamos fazer eco à observação de Mário de Andrade, um dos grandes apreciadores do livro: "Riacho Doce não repete nenhuma das obras anteriores do autor, mas repete Lins do Rego em tudo quanto faz o romancista que ele é".
Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.