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Brilho do asfalto

GVcult

04/07/2015 12h32

Por    André Dib

 

Era só isso o que queria. Paz. Buscava por paz. Encontrou um punhado no terceiro subsolo. Sob o banco de couro do importado. Entrou sentou e respirou fundo. Relaxe. Paz. Finalmente conseguiu sentir alguns de seus músculos perderem tensão e darem lugar para mais oxigênio e energia. Embora o terno, a camisa e a gravata esmagassem seus neurônios, esse era o menor dos problemas. Já estava acostumado com a camisa de força que saia de casa todos os dias pela manhã. Os problemas eram outros. Nem piores, nem maiores, nem melhores e nem menores. Tratavam-se de pensamentos. Eles estavam se reproduzindo como um vírus. Sua cabeça parecia um botijão de gás pulsante. Parecia que a qualquer turbulência a explosão seria certeira. A cabeça se desfaria junto com os 6 cilindros do motor, as linhas de couro, as vigas do prédio recém lançado e principalmente junto com os devaneios pensativos que eram a causa do seu trânsito mental. As avenidas principais estavam um caos, poucas sinapses produtivas estavam acontecendo.

Mas mesmo assim, continuaria vivendo. Disso tinha certeza. Não tinha tantos problemas de saúde assim, a maioria era controlável, e, convenhamos, qualquer pílula resolve. De olhos fechados passou as mãos no rosto e pode sentir a barba por fazer. Sabia que estava atrasado em relação a vida. Tinham muitas coisas atrasadas ou por fazer. Na porta da geladeira de inox havia uma lista de mercado, dentro dela alguns pacotes de fast food que cultivavam uma linhagem de espécies multiestrelares. Mas o que lhe trazia mais asia eram as listas de tarefas que guardava na gaveta do criado mudo. Para tentar se organizar e fazer a vida fluir de tempos em tempos fazia uma lista de coisas a fazer. O resultado era visível. Todos os papeizinhos se acumulavam na gaveta de modo que não pudesse ser aberta nem fechada. Provavelmente os trilhos já estavam emperrados.

A garagem estava calma. Diferente dos horários de pico. O prédio tinha algumas dezenas de andares e abrigava as maiores empresas, escritórios e agências do país. Era muita gente. Eram muitos negócios. Era muita pressão. Era muito chato. Porém, era muita grana. E era isso que alimentava a todos naquele lugar. Era como se o papel de parede do enorme hall de entrada fosse de dinheiro assim como o contrapeso dos elevadores de ouro.  O padrão era outro. Diferente do que tinha quando vivia com a sua família no interior. Se lembrava de como se divertia com pouco. Na verdade, se divertia com muito. Mas tudo o que tinha, todos também tinham. A natureza está para todos assim como a riqueza está para poucos. Se divertia na rua, no rio, na fazenda, com os bichos, com o céu, com as nuvens, com as estrelas, com as chuvas, com o barro…se divertia com tudo que estava a sua volta. Lembrou de uma vez que as crianças todas se juntaram e construíram um castelo de pedras. Na sua memória o castelo era tão grande que podia se esconder atrás das muralhas para se proteger das guerras de água.

Mas os tempos mudaram. Os tempos, os lugares e as pessoas. Perdera o contato com a família quando partiu para a capital cursar o ensino superior. Sozinho, conheceu um mundo novo. Um mundo, que até então, girava apenas na televisão. A vida é um filme. É preciso atuar, iluminar e editar. Mas o principal é esconder o que acontece nos bastidores. A parte de trás das cortinas é a que revela quem são os atores. Uma vez assistia sua avó fazendo tricô na sala deitado no chão. Parecia muito feio. As cores eram esquisitas, os formatos idem, nada parecia fazer sentido. Quando a avó estava perto de terminar o bordado o neto avaliou o trabalho e disse que estava muito feio. A avó pediu que se levantasse e olhasse o bordado por cima. Foi quando percebeu que, às vezes, é preciso olhar o outro lado da vida. Concluiu que a cidade grande foi bordada de cabeça para baixo. Talvez no andar de baixo alguém esteja entendendo alguma coisa. Só sabia que aquele não era o seu lugar. Opinião diferente do sábio jovem do interior que era há alguns anos atrás. Na cidade aprendeu o que era o brilho. O brilho das telas, dos letreiros luminosos, das joias, dos faróis dos carros de luxo. Descobriu que de noite o brilho é mais intenso. De dia é mais difícil fazer brilhar. De noite era mais fácil. Sabia muito bem disso. O seu fiel amigo isqueiro era a prova de que até o fogo era mais forte de noite. De dia acendia os próprios cigarros, mas de noite o instrumento podia se tornar uma celebridade e acender dezenas de cigarros de terceiros por aí. Mas para fazer brilhar era preciso lustrar um bocado. A vida atrás das cortinas eram listas de mercado e gavetas emperradas. O trabalho do lustrador só é valorizado quando ele já não está mais em cena.

E por conta disso buscou o brilho. Buscou o emprego mais brilhante, o carro mais brilhante, a casa mais brilhante, as roupas mais brilhantes. Mas o que realmente importou foi a escolha das pessoas: as mais brilhantes. E nessa história, quem brilha muito ofusca quem está por perto. Se via ofuscado. Se via como uma estrela: sem brilho próprio e sem nem sinal do Sol para fazer brilhar. Embora tivesse tudo o que queria não tinha nada de que precisasse.

Virou a chave, acendeu um cigarro e se colocou da garagem para fora. A madrugada era acolhedora. As casas de festas se punham a disposição como um mordomo de uma mansão. Da mesma maneira, os bares e restaurantes de luxo estavam de portas abertas para aqueles que podiam brilhar. Mas naquela noite não se sentia convidado, muito menos tinha vontade de participar dessa festa. Queria paz. Relaxe. Paz. Era isso que buscava. E, embora não soubesse para onde ir, sabia onde queria chegar. Já era um começo. Afinal, quando não se tem destino, qualquer caminho é caminho.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

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