Topo

15 cenas de descobrimento de Brasis

GVcult

22/06/2015 06h07

Por    Andréa Lasevicius Moutinho

………..e Christopher Loureiro Kapáz

 

"Terra Brasilis" (1519). Mapa por Pedro Reinel e Lopo Homem, Atlas Miller, Biblioteca Nacional de Paris

A literatura brasileira contemporânea tem promovido sua constante reinvenção, com uma produção cada vez mais diversa e qualificada. Dentro desse valioso amálgama, o conto 15 cenas de descobrimento de Brasis, escrito em 1999 por Fernando Bonassi, merece conspícua posição. Conforme anuncia o título, a narrativa é dividida em quinze microcontos, denominados cenas, os quais foram compilados e publicados ineditamente na coletânea "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", de Ítalo Marconi, antologia que – não por acaso – Bonassi teve a honra de encerrar. Cada um dos excertos, com nome, enredo e personagens próprios, descreve de forma minimalista uma série de imagens do Brasil, sobre cuja aparente independência, revela-se uma riquíssima rede de inter-relações orbitando em torno de um eixo central: a construção histórica brasileira, e uma real compreensão acerca da realidade do país.

As diversas abordagens propostas por Bonassi, com um vasto teor negativo, repletas de mazelas e peculiaridades, ajudam a explicar o fato da palavra Brasil estar no plural no título da obra. Uma vez que se dessacraliza certos ideários amplamente difundidos acerca no nosso processo de formação social, há um imediato prelúdio da complexidade social em questão, marcada pela confluência, nem sempre harmônica, de inúmeros elementos culturais descontínuos. Brasis plurais, sem unidade, ou estabilidade, mas com uma labilidade em constante transmutação.

O referido tema, da busca por uma identidade verdadeira, foi recorrente nas diversas escolas literárias que existiram, apesar de suas singularidades estéticas. Ora se salientou o nacionalismo ufanista, como com os românticos da primeira geração, ora se resgatou, de forma crítica, as raízes culturais brasileiras, por exemplo, nos modernistas nas décadas de 20 e 30. O conto de Bonassi, apesar de escrito nos anos 90, imerso em um contexto de rompimento com a discussão da identidade nacional como cânone literário, resgata o assunto por um olhar único, cujo caráter crítico, aliado à perspectiva psicológica e intensamente intimista, acaba por proporcionar ao leitor uma reflexão totalmente inovadora sobre o significado de suas raízes.

Experiência essa que é estimulada por uma narrativa em períodos curtos e secos, cujas breves frases, cheias de elipses e ironias corrosivas, deixam lacunas que demandam ser preenchidas pelo leitor, a fim de dar um sentido próprio à leitura. Reforçada, doravante, pelas marcas de oralidade e dinamismo do narrador, em constante diálogo com o interlocutor. E sem desconsiderar, ainda, inúmeras intertextualidades, marca riquíssima da literatura contemporânea. A cena 9, por exemplo, evidencia ironicamente tal aspecto, visto que faz referência ao poema Canção de Exílio, clássico do ufanismo brasileiro escrito pelo romântico Gonçalves Dias. No entanto, percebe-se que, antagonicamente ao original, o microconto não enaltece "a terra do narrador"; pelo contrário, é explicitada nela uma realidade de exclusão, violência e autoritarismo. É a partir desses recursos literários que, livre de escrúpulos e com uma linguagem simples, ora sutil e implícita, ora bruta, e sarcasticamente escancarada, vai-se desenhando uma visão claramente pessimista de Brasil.

Abarca, pois, temáticas significativas como a violência, sexualidade, autoritarismo, preconceitos, exclusão e miséria, inicialmente introduzidas no conto por meio de uma reflexão mais ampla, a qual suscita a discussão acerca do fazer histórico. Sugere-se, assim, a necessidade constante de se repensar a história, questionando a verdade que temos acerca dela. No caso brasileiro, tal corrente se aplicaria à idealização que temos do nosso passado natural, exótico, em vias de propor a transvaloração dessa ideologia, substituindo-a, então, por uma visão mais objetiva das nossas inúmeras carências e problemas sociais.

Bonassi perpassa, no desenrolar das cenas, por aspectos tradicionalmente presentes na nossa cultura, tais quais a sexualidade e o misticismo. Entretanto, resistindo ao simplismo e reducionismo tão comuns, evidencia nesses elementos seus vieses mais perversos: ao primeiro, atrela a violência que recorrentemente submeteu a mulher a uma situação de inferioridade; já à religiosidade, decorrente da complexidade cultural e do sincretismo religioso, atrela sua presença a uma necessidade de buscar refúgio frente a realidade severa que se apresenta.

É possível, por conseguinte, perceber como o autor faz uso de elementos cinematográficos para representar o Brasil, por meio de cenas, que apesar de fictícias, retratam aspectos inerentes à nossa cultura. Fugindo dos estereótipos e dos discursos oficiais, estuda as origens dos descalabros que se perpetuaram ao longo dos séculos no território, em um processo de lutas, sofrimentos e inúmeras derrotas, criadoras da sociedade oprimida e explorada que vemos hoje.  A apresentação concomitante de diversos enfoques, que afasta a tradicional visão holística sobre a construção do Brasil, fica clara na cena 14, "Os Brasileiros": nosso povo é caracterizado por fatores incompreensíveis e sem nenhuma lógica, reforçando, com maestria, a impossibilidade de defini-lo em sua essência.

Nesse âmbito identitário, o linguista José Luiz Fiorin se apresenta como referência, ao defender a construção da identidade nacional pelo diálogo constante com a cultura a partir de dois princípios pelos quais é percebida a relação com o outro: a mistura e a triagem. Se à primeira vista o princípio vigente no Brasil seria o primeiro, da integração e miscigenação, o conto de Bonassi põe em questão tal visão, mostrando, por exemplo, o processo de colonização empreendido pelos portugueses no Brasil: violento, cruel e intolerante. Assim, ao encontro da tese de Fiorin, o autor busca evidenciar uma triagem oculta, enrustida, mas amplamente presente até a atualidade, e capaz de criar conjunturas nas quais o preconceito e intolerância permanecem, ou mesmo aumentam, protegidos por fachadas moralmente impostas, por exemplo, pela nossa suposta cordialidade. Sob ela, fortalecemos alicerces cujas bases estão não na integração, mas na repulsa ao diferente.

Percebe-se, por conseguinte, a forma como o conto cumpre, com maestria, um dos escopos primevos da ficção: criar no público uma alteridade para com o outro, pela aproximação com outras realidades. Muitas delas, apesar de suscitarem, a priori, medo ou repulsa, seja por desconhecimento, seja por incompreensão, trazem uma incontestável riqueza para nossa humanidade. Bonassi, então, procura apresentar para o leitor essas realidades, de modo não explícito e, muito menos, raso. Há, portanto, inúmeros Brasis a serem descobertos para além das cenas apresentadas pelo autor. Por mais ácidas que estas sejam, não devem desestimular a busca por uma realidade melhor; devem, ao contrário, instigar o desejo por uma construção social constante, tão central e em dívida na nossa sociedade.

Referências

FIORIN, José Luiz. "A construção da identidade nacional brasileira". In: Revista Bakhtiniana. São Paulo, v. 1, n. 1, p. 115-126, 1o sem. 2009.
CALEGARI, Lizandro Carlos. "Cenas do Brasil Contemporâneo: leitura de um conto de Fernando Bonassi". In: Literatura em Debate, v.6, n.10, 2012.

Edição    Filipe Dal'Bó e Samy Dana

 

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

15 cenas de descobrimento de Brasis - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

Sobre o Blog

O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.

Mais Posts