Batendo asas
GVcult
30/05/2015 06h12
Por André Dib
Um passo atrás do outro, caminhava na direção do equilíbrio pelo meio fio. Não era mais ágil como antes e o meio-fio também não era tão amigo como nos seus 8 ou 10 anos. A lembrança é do seu grupo de amigos do bairro, todos andando pelos meios-fios como uma locomotiva desliza sobre os trilhos: natural. Talvez antes fosse mais fácil, ou talvez a memória fizera questão de apagar os tombos e tropeços.
Mas o que importa é que, agora, com os seus 43 anos, percebera que os amigos se foram, os meios-fios de qualidade se foram e o equilíbrio se foi. Imaginava o que os transeuntes que passavam por ele achavam de um recém milionário que tentava se equilibrar na beira da calçada. Não sabiam que havia juntado seu primeiro milhão naquele dia, como também não sabiam dos pensamentos que, agitados em sua mente, trouxeram à tona a sensação tangível de infelicidade.
Era seu sonho, tornou-se realidade. Depois de realidade, virou pesadelo. Agora não sabia se pulava da calçada e continuava a caminhar como uma pessoa normal ou se tentava se equilibrar. Cair de uma vez também era um prato desse cardápio.
Tudo parecia bem até atingir seu objetivo. Nunca produzira tanto no trabalho, assim como nunca tinha visto taxas de rendimento tão altas nos seus investimentos pessoais na bolsa. Acordar sorrindo para dormir sorrindo. Um dia após o outro, imaginando como seria ler no extrato bancário: "saldo: um milhão de reais". Lera. Naquela manhã acordou e como um leopardo avançou no smartphone que logo abriu o aplicativo do banco.
Depois da festa solitária e berros de vitória de um menino que ganha o campeonato de futebol do bairro, sentou na cama e estático permaneceu. Não conseguia visualizar o segundo milhão, muito menos o terceiro. Também não conseguia se imaginar gastando sua verba de felicidade com algo que pudesse lhe trazer o prazer que procurava.
Quando se deu conta estava se equilibrando no meio-fio, completamente alheio à vida movimentada que havia à sua volta. Talvez o dinheiro não importasse tanto quanto pensava ou talvez ainda não tivesse dinheiro suficiente. Mas entre as dúvidas, especulações e lembranças daquele bairro de 30 e tantos anos atrás, havia uma certeza: a de que não estava vivendo o seu sonho. Talvez o sonho fosse ingênuo. Afinal, o que um milhão de reais poderia trazer de tão bom? Mas e se estivesse devendo um milhão, estaria mais ou menos feliz?
Os desafios e questões surgiam como as pombas que seu avô vivia espantando do telhado da casa verde de portões amarelos. "É para mostrar que esse é o melhor país do mundo para se viver", dizia o velho que já havia viajando pelos países mais miseráveis do mundo como médico. Mas quando era pequeno não entendia porque todos do bairro deveriam saber que seu avô gostava tanto daquele país. Mas achava engraçado e dava risada dos cabelos bagunçados do querido avô espantando as pombas.,
Mas seus cabelos continuavam penteados. As pombas e as dúvidas ainda estavam lá. E talvez não fossem voar tão cedo. Talvez gostassem das cores do paletó e da gravata, assim como das cores do portão e da casa. E, portanto, ficariam por ali, mesmo que tentasse espantá-las.
Lembrou então da vez em que seu avô comprou um veneno para colocar no telhado, que prometia espantar as pombas. Depois do efeito do produto, o velho patriarca teve um trabalho diferente: subir no telhado e tirar todos os defuntos de pombas que o veneno deixou pra trás. Lembrava que naquela noite, pela fresta da porta da sala, assistiu ao seu avô chorando baixo e balbuciando arrependimento para a mulher, tão querida. O choro não era de tragédia, muito menos de drama, era pior: era sincero. As lágrimas corriam pelo seu rosto e paravam no seu bigode branco e desajeitado, assim como as pombas que parariam de incomodar os moradores daquela casa.
A partir desse dia, o senhor nunca mais espantou pombas. Ficou arrependido de tirar a vida daqueles animais que apenas sobreviviam na casa daqueles que buscavam sempre mais e mais. Formulou teses de como as pessoas são ruins. Como elas são ruins por natureza. Que não podem viver com a chateação de algumas pombas, precisam sumir com as pombas de sua vida. Agora, com os muros pintados e o portão preto, seu avô nunca mais ficara descabelado espantando pombas. Muito pelo contrário: vivia deixando alguns restos de comida escondidos entre as plantas para alimentar os bichinhos. Como quem alimenta aqueles que já foram.
Resolveu descer do meio fio e caminhou até o parque, que na sua infância não era cercado. No caminho passou pela antiga padaria do seu Zé, que já havia mudado de dono algumas vezes. Gastou um pouco da sua fortuna com pães quentinhos que alimentaram algumas dezenas de pombos daquele parque.
Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
Sobre o Blog
O GV Cult – Núcleo de Criatividade e Cultura da FGV desenvolve atividades de criação, fruição, gerenciamento, produção e execução de projetos culturais e de exercícios em criatividade.