A morte de Empédocles – uma peça de Friedrich Hölderlin
GVcult
24/02/2015 11h20
Por Bernardo Buarque de Hollanda
O pensamento poético de Hölderlin (1770-1884) atravessa um terreno de remissões e ambiguidades temporais. Sua travessia circula em torno do eixo da tradição, cuja etimologia latina remonta a tradere – trazer, entregar e, ao mesmo tempo, trair.
O caminho da tradição conduz o "grande homem" à fonte do jardim, onde viceja a flora da flor e a simplicidade da natureza. Ou, conforme alguns versos traduzidos pelo crítico José Paulo Paes:
Para o alto forcejava meu espírito, mas
Amor trouxe-o logo para baixo; mais ainda
Encurvou-o o sofrimento; assim, eis que o arco
Da vida me trouxe ao ponto de partida.
Na coluna de hoje, vamos falar de uma peça inacabada de Hölderlin, A morte de Empédocles, em particular do primeiro ato dessa tragédia grega.
A cena inicial apresenta a conversa entre duas atenienses, Pantéa e Délia. Contando que viu Empédocles, pela última vez, triste e angustiado na sombra de suas árvores, Pantéa pressente e anuncia o declínio do herói, que até então possuía "o terrível vigor de tudo transformar".
Délia, a par do acontecido, escuta da amiga os feitos e a magnanimidade de Empédocles (490-430 a. C.) no passado. Era ele responsável por atrair e encantar a multidão ao seu redor, com a sonoridade do seu peito e o retraimento do seu mistério. Este grande homem, escolhido pela natureza, sofria a contrapelo a fúria dos deuses. Abatido, padecia agora a dor do esquecimento.
A segunda cena da peça possui como personagens o sacerdote Hermócrates e o arconte Crítias, pai de Pantéa, que pretende desmascarar Empédocles ao povo, mostrando a penúria daquele que se proclama um deus e que afirma ter-se refugiado num Éter, mas que se encontra, na verdade, em meio a um "deserto ilimitado".
No diálogo travado entre o sacerdote e o arconte, surge a razão por que Empédocles perdeu suas forças: amado pelos deuses, que nele depositaram sua confiança, o filósofo grego delirou diante do povo e subtraiu a diferença na felicidade desmedida.
A terceira e última cena do primeiro ato encerra-se em tom elegíaco. Invocando a íntima natureza e os deuses celestes, Empédocles recorda sua remota condição de fonte e lamenta a atual situação em que se encontra. Lembra sua experiência divina e relembra ter auscultado em seu coração o Éter silencioso, mas confessa o orgulho de ter rompido a "beleza do elo" e de ter desejado subjugar os deuses.
Vendo-se a si próprio relegado e isolado, percebe que não há ninguém mais para vingá-lo. Ele mesmo necessita se penitenciar, de modo que arranca de sua cabeça a coroa délfica e corta os anéis de seu cabelo.
Eis, em linhas gerais, a trama da peça de Hölderlin. Como drama, que conflito traz subjacente? Como tragédia, o que compõe para o pensamento? O que a decadência de um "grande homem" suscita ao coração do poeta e à reflexão do pensador? Ao narrar a condição decadente, o que se coloca em jogo como indagação?
O crepúsculo do herói põe à tona, para Hölderlin, o próprio pensamento acerca do nascimento e da vida desse filósofo. Diante do "deserto ilimitado" (aórgico), em cuja terra nada viceja, para onde ninguém se dirige, o homem vislumbra a morte iminente. A que contraponto remonta o fenecer humano?
À fonte do jardim, responde Hölderlin. Jardim, neste sentido, remete à extensão da morada do homem. Seu habitat, moldado e circunscrito pelo jardim, advém de uma integração harmônica com a natureza cultivada, ordenada e depurada pelos matizes humanos. No entrelaçamento entre arte e natureza, Hölderlin afirma que "o divino se descobre no meio de ambas".
Todavia, a dinâmica desse des-cobrimento, isto é, a experiência divina, não pode ser conhecida, nem possuída, mas apenas sentida e apreendida em seu movimento. Por isto, o orgulho, a desmesura e a pretensão de dominar os deuses levaram Empédocles à derrocada. Ao invés de cultivar o mistério que se anuncia e se recolhe na contemplação silenciosa do mundo vegetal, Empédocles seguiu o caminho inverso, arrogando a si sabedoria e poder.
No ocaso de seu ser, encontra-se cego. Ante a autoflagelação imposta, perdeu a faculdade da iluminação criadora e assistiu à corrosão do pensamento que, como uma tocha, irradia luz sobre o mundo e a natureza.
Edição Filipe Dal'Bó e Samy Dana
Sobre o editor
Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.
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