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Ensaio Literário - Pornopopeia

GVcult

21/12/2014 09h00

Por Luísa Hernandes de Moura.

O romance Pornopopéia, publicado pelo escritor Reinaldo Moraes, paulistano nascido em 1950, traz já em seu título um retrato explícito de seu conteúdo: o prefixo "pornô", que faz referência à pornografia, quando se liga a "epopeia", ou seja, os feitos de um herói ou povo, encaixa-se perfeitamente à narrativa. Nela, o protagonista José Carlos Ribeiro, o Zeca, relata alguns episódios conturbados e sequenciais, sempre em primeira pessoa, prometendo enviar tal prosa a um suposto escritor que encontrou pela internet, para que este cuidasse de sua publicação. Regadas a muitos neologismos, mentiras, sexo e drogas, as aventuras de Zeca concentram-se no eixo São Paulo – Porangatuba, refúgio litorâneo do personagem ao se envolver involuntariamente no assassinato de seu traficante, Miro, vítima de uma bala perdida em um confronto entre a polícia e integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital), e são finalizadas (mas não concluídas) em uma fuga para Paraty.

Em entrevista concedida à Revista Piauí, em sua 51ª edição, Reinaldo Moraes se refere a Zeca como um "narrador sem superego, sem censura". Livre de escrúpulos, o protagonista é a perfeita antítese do politicamente correto, banalizando a tudo e a todos e recorrendo a qualquer subterfúgio a fim de salvar a própria pele. Durante a trama, Zeca ironiza os abortos que "teve" que pagar a namoradas; a probabilidade de adquirir doenças sexualmente transmissíveis; o casamento, sendo este tanto o seu próprio quanto o dos demais (a exemplo de seu envolvimento  com Nina, esposa de um de seus melhores amigos, Nissim, que constantemente lhe empresta dinheiro, além da chave da casa pertencente à família da esposa para que ele fizesse estadia em Porangatuba); a morte; o amor. Ciente de sua visão medíocre, o narrador consente ao suposto destinatário de seu relato: "Faça da minha vulgaridade um parque para suas diversões" (MORAES, Reinaldo, pp.435).

José Carlos é a tipificação do malandro brasileiro que, com seu "jeitinho" característico, consegue sobreviver em uma vida boêmia e desregulada. Sem rendimento fixo, aplicando pequenos golpes no cunhado, faltando com o pagamento da secretária Terezinha e com a pensão do filho, Zeca investe todo seu capital e energia em bares, "petecas" de cocaína e prostitutas. Ainda que inspirado no personagem principal de um romance "de costumes" pré-realista, sendo este Leonardo Pataca, protagonista de Memórias de um Sargento de Milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, a narrativa apresenta um declarado "esquemão naturalista", que não poupa descrições ousadas de relações carnais, desde aquelas que ocorrem em uma espécie de ritual exotérico (surubrâmane) até sua "experiência pessoal" com uma lula morta, comprada na barraca de praia da família de Jôsi, caiçara com quem também são relatadas relações sexuais. Se Leonardo Pataca representa, para a crítica literária Walnice Nogueira Galvão, "o ancestral de Macunaíma", personagem-título do romance de Mário de Andrade, publicado em 1928, Zeca encarnaria o futuro de ambos, o anti-herói do século 21.

No que se refere à linguagem utilizada por Moraes, a coloquialidade impera, sem nenhuma economia no uso de palavrões e outras expressões de baixo calão, tornando a leitura fácil e instigante. Os já citados neologismos são constantes e inerentes ao estilo do autor. O texto corrido é cortado algumas vezes pelo uso de digressões ao estilo machadiano, fazendo menções ao leitor (no caso, o suposto escritor que publicará o relato de Zeca) e, também, pelo vício da personagem na criação de haicais diante das situações em que se encontra. Para ele, o haicai é um "instantâneo visual", "o mais perto que a linguagem verbal consegue se aproximar do cinema".

No âmbito profissional, Zeca é um cineasta com apenas um filme lançado, o underground ("údigrudi") "Holisticofrenia", premiado em um festival na Colômbia, o que garantiu a Zeca o título de "diretor maldito", dez anos atrás. Agora, o protagonista se ocupa de trabalhos esporádicos que vão desde filmes pornôs até vídeos institucionais (como os de embutidos de frango, relatados no início da trama). Portador de uma "visão cinematográfica ", José Carlos possui o estigma de caracterizar as demais personagens, impregnando-lhes estereótipos e a forma como eles se encaixariam em seu futuro filme: Lia, sua esposa, com quem Zeca troca infidelidades, é a socióloga-de-esquerda-professora-da-USP, enquanto Nina é a corna-ressentida-que-quer-dar-o troco-no-marido. Rejane, proprietária sexagenária da pousada Chapéu de Sol, com quem Zeca mantém um enlace por interesse, é rotulada como uma velha interessada no homem mais jovem. Josilene, a caiçara, é tida como eterna vendedora de aperitivos de praia, destinada a se casar com o violento PM Wellington, ter uma penca de filhos e permanecer na vila de Porangatuba ad infinitum, condenação próxima daquela que aplica ao garotinho que Zeca resgata de um afogamento, fadado à pobreza, à falta de informação e a um eventual envolvimento na criminalidade.

Uma personagem que recebe destaque especial na concepção de Zeca é Sonora, a Sossô, jovem de 16 anos e amiga da filha de Nissim, Estelinha. Extremamente precoce, Sossô representa a "mulher idealizada" da trama: com biótipo invejável, alternativa, ousada, esperta, tatuada, portadora de olhos "capitulinos" e com tantos valores morais quanto Zeca, ou até menos, Sossô acompanha Zeca na surubrâmane e conquista temporariamente o pícaro paulistano: "… na Sossô, o continente era o conteúdo, a forma era o significado, a aparência era a própria essência" (MORAES, Reinaldo. pp.190).

Com o desenrolar do livro, é visível a degradação de Zeca, sua passagem de cineasta promissor a fugitivo da polícia e sua recorrência constante a "paraísos artificiais". O vício faz com que ele se envolva em uma rede sem fim de mentiras e escolhas ruins e momentâneas. Apesar da decadência, não é impossível que Zeca consiga se safar dos trâmites judiciais e acertar suas inúmeras dívidas, com a ajuda de muita lábia e a possível aplicação de algum pequeno golpe. Em Pornopopéia, a moral é posta de lado a fim de se preservar o humor e, até certo ponto, a noção de realidade.

Se não é o mundo, é o que o mundo poderia ser com um pequeno ajuste, ou dois. Segundo alguns, esse é um dos principais objetivos da ficção.
(PYNCHON, citado por MORAES. pp.436)

 

Referências bibliográficas:
CONTI, Mario Sérgio. O malandro voltou fissurado. In Revista Piauí, n° 51, 2010.
MORAES, Reinaldo. Pornopopéia. São Paulo: editora Objetiva, 2009.

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Sobre o editor

Guilherme Mazzeo é coordenador institucional do GvCult, graduando em Administração Pública pela FGV-EAESP. Um paulista criado em Salvador, um ser humano que acredita na cultura e na arte como a direção e o sentido para tudo e para todos. A arte é a mais bela expressão de um ser humano, é a natureza viva das coisas, a melhor tradução de tudo. Só a cultura soluciona de maneira sabia e inteligente tudo, a cultura é a chave para um mundo melhor, mais justo, livre e próspero! Devemos enaltecer e viver nossas culturas de forma que sejamos protagonistas, numa sociedade invasiva e carente de: vida, justiça, alegria e força.

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